a crise sem precedentes fez com que vários chefs de cozinha repensassem a comida delivery, já que agora pouco importa essa tal de experiência, ou rolê, enfim, o programa gastronômico. apenas a comida à frente do comensal expõe o cozinheiro. mais que isso, o desnuda.
é preciso escolher com carinho e inteligência que tipo de comida viaja melhor e pensar nos possíveis contratempos dessa nova demanda, tais como eventuais atrasos e indisposições com o serviço de entrega.
até a famigerada pizza já mudou o sistema de entrega em alguns lugares, sugerindo que o comilão a finalize no seu forno desfibrilador, numa desesperada tentativa de ressuscitar a redonda.
situação essa que me faz lembrar de certa ocasião em que estava numa famosa pizzaria e o produto chegou na mesa bem murchiba. por coincidência o dono, que é meu amigo até hoje, passou pela minha mesa e comeu meu rabo da seguinte maneira:
– porra, júlio! mas que caralho! um século de estrada e você num sabe que tem que sentar perto do forno pra comer bem?! que a pizza vai pegar corrente de vento e esfriar até chegar aí nessa mesa bosta que você está? ficou burro ou o que?! daqui a pouco vai ta pedinu pra viaji! é só o que falta!
eu já sabia dessa manha, estava sentado com minha companhia no fundo do salão porque a pizza não era o item mais importante no encontro daquela noite. encontro esse que tinha a intenção de ser um pouco mais discreto. mas errei, tudo bem. também sei que se não respeitar a comida, a comida não irá te respeitar e pode te expor a uma ocorrência dessas. aliás, até que ficou barato, sempre pode ser pior. essa noite mesmo teve final feliz, na mesa mais próxima do forno, com vinho e pizza, comigo e agora mais duas pessoas, já que o dono da pizzaria se juntou a nós. a única coisa que paguei foi a pizza pedida errada, pra largar a mão de ser jumento, segundo meu simpático amigo.
mas nem sempre as noites tem final feliz. parafraseando o genial fausto fawcett…
e o brasil o que é? é o abismo que nunca chega. o abismo que nunca chega.
voltando aos dias de hoje, sobre comida delivery em tempos de quarentena, é natural que tanta procura provoque problemas de tudo quanto é tipo. muita demanda pra pouca oferta.
daí que essa chef famosa pediu uma pizza nesse mesmo local. após considerável atraso, o motoboy entrega o produto rapidamente a ela e logo se arranca.
eis que ao abrir a caixa os olhos da moça saltam com espanto em direção ao seu interior, ao avistar que chegaram ao destino final apenas as bordas da pizza.
após boa crise de rizus, ligou para um dos sócios que resolveu seu problema rapidamente, levando ele mesmo não só uma, mas duas pizzas pra moça, junto com garrafa de bom vinho e um imenso pedido de desculpas. outra noite com razoável desfecho para todos lados, inclusive para o lado mais vulnerável da cadeia, coisa rara.
enquanto isso, os aplicativos de comida ficam cada vez mais miliardários. é preciso repensar em todo sistema, porque a parte mais frágil começa a se revoltar. e com a mais absoluta razão.
se não dermos uma fatia do bolo – ou, no caso, da pizza – maior pra eles, é questão de tempo pra ela ser tomada.
não é coerente dar palestrinha sobre sustentabilidade e ao mesmo tempo colocar sua equipe em ônibus lotados e não dar condições decentes de trabalho aos tão importantes entregadores, o último elo até a comida chegar ao freguês.
o mundo colapsou e essa ficha há de cair em todos. se não é possível mudar a lógica do dia para a noite, tratar o próximo como seu igual já é bom começo.
e, se puder ficar em casa, não abra mão disso. se não por ti, sim pelos outros, especialmente por quem trabalha pra sobreviver e também pra você manter esse privilégio.