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Boteco do JB

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Month: May 2020 (page 3 of 4)

hamlet contemporâneo

ontem fausto fawcett completou 63 anos e nenhuma homenagem foi feita a esse que considero como um dos melhores cronistas do planeta. quem já leu seus livros bem sabe que ele previu várias das merdas que tão rolando hoje.

é natural que bons artistas sejam mais conhecidos por obras menores e fausto se tornou escravo de katia flávia, aquela que funciona de maneira mais adequada na literatura, embora seja inegável seu apelo no palco. ano passado vi um excelente show dele no rio e tive que aguentar meia dúzia de tiozões do churrasco implorando por calcinha! calcinha! enquanto o artista se apresentava impecavelmente para poucos.

o rio é uma cidade de cidades camufladas

com governos misturados, camuflados, paralelos

sorrateiros ocultando comandos

escrita no milênio passado, a letra de rio 40 graus segue mais atual que nunca e quem já teve a honra de vê-lo interpretar a canção ao vivo bem sabe da sua força, com todo respeito à ótima fernandinha abreu.

ninguém sacou o caos carioca como fausto fawcett, pai de um estilo único, o cyberfunk. ouça suas músicas e, mais que isso, leia seus livros.

por conta do projeto trovadores do miocárdio, pude testemunhar por algumas vezes o seu lado de cronista romântico no palco. impecável, como sempre, sem concorrência no gênero.

assim como o gênio aldir blanc, fausto apresenta um rio de janeiro que vai muito além da inofensiva bossa nova teletubbie. copacabana sem patinhos, não é melhor ser alegre que ser triste.

o meu palpite é que o aniversariante da semana jamais terá o reconhecimento merecido, nem depois de morto. a cultura no brasil é cada vez menos importante – nem entrarei no mérito da ignorante portadora de péssimo caráter ocupante da secretaria nacional – e a perspectiva da conjuntura não é das mais otimistas.

mas, tudo bem. afinal…

um hamlet contemporâneo não segura a caveirinha não

viva fausto fawcett! os que vão morrer o saúdam!

run chicken run

cozinhar é mais um ato de obsessão que de amor. claro que falo só por mim, inclusive pago um pau pra quem consegue ser diferente. mas soltar pratos com o mesmo padrão diariamente não é coisa de gente muito equilibrada. uma das broncas mais frequentes dadas por um chefe de cozinha convencional é quando seu cozinheiro solta sua verve criativa e muda alguma característica de um prato. provavelmente quem o pediu quer ter a mesma experiência da visita anterior e está pagando por isso. fazer uma comida média e igual todo dia é mais difícil que ser genial por um breve momento. e mais chato também.

já cozinhar em casa pode trazer outro tipo de obsessão, a de melhorar cada vez mais sua própria receita. no momento finalizo um livro com receitas crônicas, em homenagem à musa nina horta, com ilustrações do amigo e grande profissional binho miranda. a ideia é que o leitor tenha de onde partir, pra chegar à sua própria fórmula. porque tem coisa que não dá pra passar. ponto de sal, por exemplo.

um dos capítulos é dedicado a uma obsessão ainda mais antiga que o carbonara, algo que vem da infância: frango frito.

explico porque vem de tão longe. como muitos sabem, sou de uma família de feirantes que vendia frango e miúdos de boi em feiras livres de osasco, itapevi e cotia. o açougue a céu aberto não oferecia assim o ambiente mais apropriado possível e alguns itens passavam do ponto. como não podíamos vender produto que não tivesse fresco, eu mesmo lavava os frangos que passavam com vinagre e depois os temperava pra dividirmos entre os nossos. no fim do dia, em casa, empanava e fritava. era divertido e gostoso.

de maneira que se aprendi a lidar com frango ruim quando pequeno, é moleza lidar com os caipiras e orgânicos que hoje temos à disposição. aliás, frango bom é aquele que é criado solto, saiba.

já na meia-idade descobri que outros compartilham da mesma obsessão aviária e cada um desses tem a mais absoluta certeza de que sua versão de frango frito é a melhor da galáxia. umas são ótimas, outras nem tanto. no livro reproduzo a minha, que já foi testada em casa centenas de vezes e considero bem boa.

tudo isso pra dizer que ontem um desses amigos, danilo nakamura, teve a imensa gentileza de me mandar a sua versão, que se enquadra entre as ótimas citadas no parágrafo anterior. não satisfeito, enviou também um maravilhoso dirty martini, com manzanilla e bitter de umami, dose quádrupla.

encher a lata de bom goró e me empanturrar de frango frito é um dos tipos de diversão que mais aprecio. danilo ainda teve o cuidado de entregar a iguaria no jeito para eu mesmo finalizar, com as devidas instruções, para a experiência ser bem daora.

é aconselhável ter válvulas de escape dentro da situação tristíssima em que vivemos. torço para que ache a sua e que o sofrimento seja o menor possível.

sobrevivamos.

long tall sally

os anos 90 do século passado foram bem divertidos, especialmente para quem gosta como eu de ir em shows de rock.

moeda forte, o que não faltava era a presença de bandas de grande porte. com décadas de atraso, elas chegavam no brasil embaixo de uma caralhada de críticas, que os chamavam de dinossauros do rock. acontece que esse senhor que vos escreve agora na época era adicto do estilo clássico que ouço até hoje.

na verdade esses xingamentos vem de antes. quem tem mais de 45 anos bem deve se lembrar da primeira vez em que o jethro tull veio ao brasil, em 1988, quando subiu ao palco usando cadeiras de rodas de rodas e muletas, numa bem humorada reação às gentis manchetes da semana.

admitamos que até hoje quase ninguém aporta por aqui no auge. mas o mundo como era acabou e tão cedo não teremos shows ao vivo, de maneira que novidades não nos interessam mais.

voltando aos anos 90, a programação dos velhos precoces como eu que saíam na noite da cidade de são paulo era mais ou menos a seguinte: durante a semana shows internacionais no olympia e no palace, no fim de semana o aeroanta era a balada, com shows nacionais e algumas variáveis sobre o mesmo tema. levo comigo inúmeras boas lembranças de shows como black sabbath com dio, ramones, peter gabriel, yes, motorhead, the exploited, faith no more, entre outras coisas.

tínhamos que ficar espertos pra saber quando rolaria algo que presta no aeroanta durante a semana, como raimundos e chico science. no fim tudo dava certo. o único cuidado a ser tomado era o de ligar antes na casa pra se certificar que o capital inicial não iria tocar. porque há limites para a tolerância, há limites! essa banda já era o resto do excremento do cavalo do bandido desde muito antes de estourarem com seu estúpido aCÚstico.

virou o milênio, muito tempo se passou e uma pandemia mudou o mundo, inclusive o artístico. no brasil falta bom senso e sobra live. fica a impressão de que se corre o risco de ver um sertanejo berrando com uma latinha de itaipava na mão ao abrir a geladeira.

e é nesse clima tenso que presenciamos a ressurreição do maldito capital inicial, nossa bosta phoenix brasiliense, apresentando a pior versão da galáxia de uma excelente banda britânica, o queen. aos brasileiros resta apenas orar para a inglaterra não declarar guerra ao brasil.

hoje também morreu um dos maiores roqueiros da história, aos 87 anos. tive a honra de vê-lo em cena ao lado do seu comparsa chuck berry e passarei o dia o ouvindo, para esquecer da existência daquela infeliz voz de matraca. será um bom dia.

depois da casa, a rua

a verdade é que todos nós fomos longe demais e o capitalismo foi cancelado. quem tentar correr atrás do prejuízo se dará mal, é preciso se reinventar. o problema é que não sabemos direito como será o novo mundo e até isso acontecer é preciso antes de tudo achar um meio de sobrevivência.

escrevo há anos que comer é um ato político e esse pensamento – que não é meu, mais gente cita isso há muito tempo – hoje é mais que atual, é urgente.

pra decidirmos o que fazer, precisamos analisar a conjuntura política de todo o cenário, com o fim de identificarmos os erros que não devem ser repetidos.

responsabilizar a lei da oferta e procura por probostas medíocres e caríssimas é ato a ser eliminado não só na gastronomia, mas sim em todos os segmentos. o mercado do luxo nunca foi tão dispensável.

assim como não é bem vinda a atitude de jovens coxipsters que montam casas de boneca que produzem a própria farinha, como se isso fosse salvar o mundo e a isso tem o cretino cinismo de chamar de sustentabilidade, sem se dar ao trabalho de aprender a cozinhar. quem paga por isso não se interessa por comida e espero que a reconstrução do mundo faça com que esses negócios caiam em desuso, embora admita minha falta de otimismo nesse sentido.

quantidade absurda de tudo quanto é tipo de tributo, leis trabalhistas ultrapassadas, moeda desvalorizada e mercado imobiliário fora da realidade são apenas alguns dos motivos que elevam o valor de venda do prato, que fazem uma mera pizza alcançar quase 100 porcinas de preço final de venda ao comensal. claro que a afetação e a preferência pelo pé direito alto do salão não ajudam em nada.

mas as pessoas gostam assim! assim diz o canalha do tiozão restaurador, que bem sabe o que está fazendo.

esse tipo de atitude não caberá no novo mundo, será preciso pensar mais. inclusive a tendência dos últimos anos foi justamente a abertura de portas com operação mais dinâmica oferecendo bom produto por menos.

afinal, o que vale mais? uma bela garrafa de vinho ou o serviço do sommellier natureba? eu fico com a primeira opção e creio que você também.

o grande problema da maior parte dessas casas é que para cobrar um pouco menos, elas são bem apertadas e é possível que por um bom tempo ninguém vai querer ficar próximo do outro. com o mercado imobiliário quebrado, é preciso muita atenção tanto de quem quer abrir algo quanto de quem já está aberto e com todo seu dinheiro investido no negócio. as falências são inevitáveis e hoje é impossível ver a real dimensão desse problema. por enquanto, a única certeza é a de que a corda estoura do lado mais fraco; é aquela família do garçom desempregado que não tem a mínima condição de se isolar que pagará a maior fatia da conta, enquanto banqueiros e pastores seguem cada vez mais ricos. mas isso também não é novidade. porém dessa vez é provável que a revolta seja muito maior, o povo deve ir pras ruas por conta própria, sem manipulação política.

ruas de onde nunca deveria ter saído a gastronomia raiz. a minha aposta é por mais calçada e menos salões, com comida possível e bebida acessível.

sobrevivamos.

o pior carbonara do mundo

a obsessão por carbonara vem de longe. comida simples, rango de fim de noite, praticamente um miojo de cozinheiro. já escrevi sobre isso aqui e também em outra mídias. inclusive sobre a possibilidade de troca de alguns ingredientes, como o guanciale por pancetta.

em tempos de quarentena, é essencial usar apenas o que está à nossa disposição na despensa, as compras de reposição devem ser feitas com sabedoria e de preferência perto de casa. morador do centro paulistano, meu carbonara semanal rodou, por não ter guanciale, nem pecorino na minha área. e eu que não vou pagar de madame no santa luzia. aliás, nojo daquela fila enorme em tempos tão difíceis. e olha que é meu mercado preferido, ia lá todo mês. mas não dá mais, pelo menos nessas condições. a visita ao lugar só se justifica se o comprador morar na vizinhança. se dono do comércio fosse, colocaria alguém na porta solicitando comprovante de residência dos malditos quarenteners de boutique.

daí que nessa semana um famoso chef televisivo escocês apresentou numa live sua versão de carbonara em apenas 10 minutos corridos. o tempo cronometrado tem mais a ver com reality show do que com gastronomia e vale como entretenimento, dependendo do seu gosto pessoal.

adaptações e idiossincrasias podem ser mais que bem vindas, especialmente quando falamos de um chef desse porte e com alcance global.

mas ficou a impressão de que o scotch passou por aquela bochecha de maracujá e subiu ao cérebro de gordon ramsay, o chef que desconhece limites.

sua receita não tem eventuais substituições que seguem o raciocínio carbonarístico, tais como pecorino por grana padano ou espaguete por rigatoni. estamos falando da adição de ingredientes como cogumelos, bacon e até ERVILHAS. talvez alguém tenha ido longe demais.

o resultado final não lembra nem de longe algo parecido com um carbonara e se assemelha mais a qualquer prato servido na pizzaria bate-papo.

que a pandemia mexa menos com a cabeça das pessoas e registro aqui a torcida para que o chef saia dessa e se recupere o quanto antes.

#forzagordon

cronistas urbanos

quando falo que aldir ia além do rio do balneário digo que ele nos mostra uma cidade possível, com gente com os pés no chão, não no morro, nem na areia bossa nova, ambientes tão caricaturizados por autores de escrita pouco atraente.

aldeão tijucano, cronista urbano do homem comum, seu trabalho tem, além do indiscutível talento, notável honestidade intelectual. transformar realidade em fantasia tão boa é mérito de poucos.

talvez o similar paulista seja joão antônio, meu escritor brasileiro preferido. não à toa, depois de sua morte, demoraram quinze dias pra achar seu corpo em copacabana. e aldir, sem plano de saúde, se foi num hospital público. verdadeiros gênios não devidamente recompensados durante a vida, maldita desonra que não é exclusiva de brasileiros.

copacabana que é tão bem mostrada por fausto fawcett, aquele que considero como o maior cronista brasileiro vivo. segue bem e no auge. costumo dizer que o ponto mais alto da minha vida com pretensão artística se deu na noite em que dividi palco com ele, mário bortolotto e xico sá.

só tinha visto show solo do fausto no milênio passado, aeroanta, noite histórica com loiras performáticas e banda boa pra porra. perto do ápice da apresentação, acaba a luz, mas os encantados da plateia pouco se importam, tudo certo. ano passado, décadas depois, fui em outro show dele, na famigerada zona sul carioca. enquanto o artista se apresentava de maneira impecável, o público playboy se limitava a zurrar calcinha! calcinha! o tempo inteiro. profissionalíssimo, seguiu até o fim como se tivesse cantando no royal albert hall. e ele ainda tem livros tão maravilhosos quanto pouco lidos.

citei brevemente o marião, né? então, além de ser um monstro da dramaturgia brasileira, ele comanda um pequeno teatro e um dos bares mais legais de todos os tempos. mas infelizmente poucos se interessam pelo negócio, que tem que contar níqueis todo mês para ver se consegue se manter aberto.

falei do xico também, ninguém escreve com tanta fluência. se encontrá-lo no buteco, pode dar pra ele um guardanapo sujo e uma ou duas palavras quaisquer. em no máximo 5 minutos ele te mostrará o que é uma canetada de verdade, o que se dá pra fazer com uma bic. xico sá faz parecer fácil o ofício de escritor. claro que também não é assim um fenômeno de vendas.

um país sério ergueria bustos para todos os cronistas citados nessa postagem e pra mais uma caralhada de outros que não vem ao caso agora. os homenagearia em vida e daria ao menos condições mínimas pra se sustentarem enquanto escrevem.

mas isso nunca vai acontecer. que venha a próxima live neo-sertaneja, então.

o tempo e a empada

não sei por onde andam os chefs que adoram desfilar pelos salões de seus restaurantes, mas fato é que boa parte dos comensais voltaram ou até mesmo começaram a cozinhar em suas próprias casas.

porém, dependendo das circunstâncias, o delivery se faz necessário. pode ser por preguiça de lavar a louça, pela mera vontade de ajudar o pequeno comércio local que tenta se manter aberto no meio da quarentena ou por qualquer outra motivação.

ontem à noite, através do aplicativo zoom, participei com amigos de uma celebração à vida e obra de aldir blanc. foi entre vários goles, no meio do justo tributo, que um dos nossos soltou que um famoso botequim carioca – de passado suspeito, embora há quem diga que até teve noites de glórias, antes de virar rede – deixou de entregar empadas, mas segue com delivery de outros produtos.

acontece que o ato de não entregar empadas é de uma estupidez sem precedentes na famigerada saga da comida pra viagem, especialmente quando já se tem o serviço de delivery, oferecendo outros produtos que decerto nem chegam tão bem no aconchego do lar, doce bar.

explico.

além da empada ser patrimônio imaterial do botequim carioca há comidas que viajam bem, outras que sofrem um bocado e, por fim, há o rango que melhora com a viagem, assim como alguns vinhos com o tempo.

por ser fechada, a empada não murcha como, por exemplo, a pizza, essa poderosa inimiga da comida tropeira.

outra coisa. já tentou comer uma empada quentinha, assim que sai do forno? se sim, bem sabe que ela queima a língua. todo mundo que frequenta botequim e gosta do salgado em questão já pagou o mico de dar a primeira mordida para em seguida soprar infantilmente o recheio com a esperança dele esfriar um pouco, enquanto o céu da boca tá pelando. e geralmente o sopro não alivia muito, na real o salgado só chega na temperatura ideal próximo da última mordida, quando o sabor da derrota já está escancarado nos seus olhos.

agora, se a empada é empacotada com o devido profissionalismo assim que sai do forno e parte rumo à sua casa para chegar em menos de 30 minutos, ela chegará no auge de sua forma, implorando pra ser comida. eis aqui um salgado que gosta de viagens médias e não foi feito à toa.

o sujeito que não transa queimar a boca ao morder uma empada não quer guerra com ninguém.

claro que há também a empada de estufa, aquela que tem a paciência budista de saber esperar pela hora certa do boêmio de balcão de botequim ficar faminto, para finalmente ser devorada. mas isso é uma história que só voltaremos a viver se o mundo voltar a ser algo próximo do que era.

aldir

hoje se foi um gigante das letras.

aldir blanc é um dos melhores compositores da história e hoje o mundo morre um tanto com sua ausência.

quem quiser conhecer o rio de janeiro que vai muito além do bobo balneário deve conhecer sua obra por completo, especialmente seus livros.

estácio, tijuca, muda, samba, subúrbios, a navalha, o carioca, tá tudo ali. é impossível estudar o rio de janeiro que interessa sem passar por aldir.

embora não o tenha conhecido pessoalmente, temos alguns amigos em comum. entre nós, dizíamos em tom de brincadeira que ninguém sentiria tão pouco a quarentena quanto ele, dada a sua reclusão por vontade própria há tanto tempo.

pessoas mais habilitadas que eu, como luiz antônio simas e o marechal álvaro costa e silva, já escreveram ótimos textos sobre ele. aqui nesse balcão quero que edu goldenberg escreva, se um dia ele tiver condições pra tanto, já que era muito próximo ao bardo.

eu simplesmente não consigo, sinto como se não tivesse alvará pra tanto. me limitarei a matar uma garrafa de whisky e ouvir o magnífico álbum vida noturna durante o dia inteiro, em sua homenagem.

o artista se vai, mas sua obra fica e vive entre nós. aldir blanc nunca morrerá.

raí 7 x caio 1

hoje reprisa na gazeta um dos jogos que marcaram minha adolescência, a final do campeonato brasileiro de 86, ocorrida no ano seguinte, nome de um disco horroroso do whitesnake. aliás, em 1987 o tricolor também levou o paulista no morumbi, diante do público de quase 110000 pessoas. neto no banco. não à toa, o camisa 10 dos dois títulos tricolores foi o pita no auge de sua forma, o que não é pouco. com todo respeito ao supercampeão raí, pita sempre será meu preferido na posição, relação afetiva.

no meu livro edifício tristeza conto o que houve comigo na noite da final do brasileirão, hora dessas compartilho por aqui essa história acrescida de detalhes não publicados. mas não hoje. porque nessa semana o golaço foi marcado por, veja só, raí.

todo homem público do mundo tem a obrigação moral de condenar o genocida que ocupa o palácio do planalto e raí honra o nome da família, especialmente o do seu irmão, ao pedir sua renúncia.

assim como sócrates decerto aplaudiria o ato em pé, seu companheiro casagrande endossou a parada o quanto antes, mostrando também o grande cara que é.

mas todo time tem ídolos e vilões registrados na história. e é absolutamente lamentável a atitude daquele playboy de carreira apagada que nunca fez nada pelo clube ao afirmar que raí tem que falar sobre esporte. ora, bolas! cada um fala sobre o que quiser quando bem entender.

podemos falar inclusive do pai do caio, preso em flagrante em 1985 por fraudar guias do inamps (hoje inss), causando prejuízo monstro aos cofres públicos, como bem apontou em sua coluna o jornalista juca kfouri, outro que não se cala diante de situações como essa.

fora da cadeia há muito tempo, hoje o pai do medíocre jogador é conselheiro do spfc e já buscou junto com o atual presidente a demissão de raí, que atua como diretor de futebol do clube. olha como o círculo sempre se fecha, é só seguir o fio.

além da decisão de 87, a rede bandeirantes de televisão reprisará hoje também a magnífica decisão do mundial de 1992 contra o barcelona, com direito aos dois golaços do raí, um de barriga e outro de placa.

“na holanda costumamos dizer que, se você vai ser atropelado por um carro, é melhor que seja por uma ferrari” assim disse o técnico do barcelona johan cruyff, após perder o título para o são paulo.

como diria belchior, nossos ídolos ainda são os mesmos. que sejam no mínimo decentes, saibamos escolhê-los.

agora, com sua licença, vou fritar torresmo e abrir a primeira cerveja, porque hoje é dia de bom futebol. nunca aquele trecho do hino as tuas glórias vem do passado fez tanto sentido.

post scriptum

errei uma das reprises. o jogo que a bandeirantes exibirá hoje é o do bicampeonato mundial, no ano seguinte, contra o milan. aliás, também merece ser visto. jogaço que retrata bem o auge da história de um grande clube. abraço gigante e obrigado, toninho cerezo!

cenas tijucanas

novos tempos, todo fim de noite tenho conversado através de um app com amigos, boa parte deles tijucanos, tanto que batizamos o papo de tijuca connection. as confidências e impressões que são trocadas anestesiam um bocado a situação e nos ajuda a manter alguma sanidade. nessa semana o edu goldenberg, um dos principais membros, desenterrou uma história tijucana com ares de surrealismo e pedi pra ele escrever sobre o causo, pra eu postar por aqui. após breve pesquisa, checou que já a tinha publicado no outro jb em 2009, quando o editor era o glorioso marechal, também integrante do nosso atual grupo. como está muito bem escrito, optei por publicá-la aqui também, sem mexer uma vírgula.

Entraram no bariloche…

Edu Goldenberg

Meu compadre Leo Boechat, pai da pequena Helena, ela que é minha mais recente paixão derramada, é testemunha auditiva (e vocês entenderão mais à frente porque não digo “testemunha ocular”) do que vou lhes dizer, sem medo do erro: na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe, e segredo é um troço que não existe. Um dia desses, há coisa de – o quê?! – uns dois anos, o maior conhecedor de cervejas estrangeiras que conheço, resolveu fazer um bonito com a então namorada, hoje sua mulher, justamente a mãe da pequena e doce Helena. Em um sábado pela manhã, fazia um tremendo sol, tomaram o metrô em Botafogo em direção à Tijuca, de mãos dadas – ele é um romântico. Leo prometera apresentar à namorada a mais fabulosa empada de camarão da paróquia. Notem bem que reside, em seu gesto, uma profunda, comovente e destemida declaração despudorada de amor. O Leo não pode nem sentir o cheiro de camarão que inicia, de pronto, um processo gravíssimo de edema agudo de glote, desses fatais. Mas vamos em frente. Saltaram na estação Afonso Pena, reconheceram o terreno – velhos, velhas, crianças, babás, vendedores de pipoca, algodão doce, o furdunço armado – e seguiram a pé pela rua de mesmo nome, Afonso Pena, rumo ao Salete. Vai daí que eu passava de carro pela Gonçalves Crespo, uma de suas perpendiculares, quando o avistei e, ato contínuo, telefonei pro Leo.

– O que faz você na minha terra? – disse eu depois do alô de praxe.
O Leo parecia uma piorra em busca de mim (eu a tudo assistia pelo retrovisor do carro).

– Onde você está? – ele disse com voz de quem não acreditava naquilo, olhando pra cima, em volta, sem êxito em sua procura.

– Na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe… vais aonde?

E ele, depois de cochichar um “não acredito…” – que eu consegui ouvir – disse:

– Ao Salete.

– Ótimo! Ótima pedida! Siga em frente, mais 200 metros e você chega. Nessa mesma calçada. Seja bem chegado ao bairro. Um abraço! – e desliguei.

O Leo passou semanas querendo saber como aquilo se dera (e está sabendo apenas agora, lendo isso). Teve, contou-me depois a mãe da pequena Helena, um princípio do tal edema de glote com o susto que levou, susto que ele interpretou como uma invasão de privacidade, uma violação do seu sagrado direito de ir e vir, esses troços.

Mas isso não foi nada, não foi nada. Perto do que a Tijuca pode produzir em matéria de inviolabilidade da vida alheia, foi brincadeira de criança.

Contar-lhes-ei uma bem pior (ou melhor, é uma questão de ponto de visto e de ângulo de observação), que dá sólido sustento ao que eu lhes disse sobre a inexistência de segredo ou sigilo, na Tijuca. Na Tijuca, digo sem temer o equívoco, o simples e seminal olhar que anuncia a traição é princípio e prenúncio do furacão que devassará a vida dos futuros amantes, soprado pelas bocas linguarudas que são, convenhamos, uma tradição do bairro. Vamos aos fatos.

Bebia eu, há coisa de uns meses, no Bar do Marreco, espelunca comovente na esquina de Caruso com Haddock Lobo, na fabulosa companhia de Zé Sergio, numa de suas incursões tijucanas, egresso dos cafundós de Niterói. Aliás, eu, Zé Sergio e um amigo cujo nome preservarei em razão da natureza da coisa.

Falávamos sobre futebol, mulher, política, sobre a qualidade da comida que ali é servida, depois de preparada pelas mãos mágicas da Cátia, sobre a qualidade das moças que passavam, acompanhávamos atentos a movimentação do churrasco promovido pelo seu Brasil na calçada, quando nosso amigo, antecipando a despedida, disse batendo no relógio de pulso (ele é um antigo):

– Daqui a pouco tenho de ir. Faço um ano de namoro hoje, ela ficou de passar aqui pra me pegar… – e fez carinha de preocupado.

Não se passaram nem cinco minutos e chegou a moça, a quem não conhecíamos. Acenou do outro lado da rua e o malandro despediu-se, de fato. A moça, é preciso dizer para que a cena ganhe curvas e cores, era dessas de parar o trânsito e fazer o guarda engolir o apito. Dezenas de olhos seguiram os passos do casal caminhando pela calçada, na contramão do fluxo, depois que ela atravessou a rua ao encontro do namorado. Caminharam coisa de cinquenta metros e, vupt!, sumiram. Seu Brasil anunciou abanando a brasa do carvão com um leque de papel:

– Entraram no Bariloche… Rapaz de sorte!

Uma senhora que bebia conhaque de pé no balcão deu seu parecer, coçando a cabeça com um palito:

– Feio pra diabo com um mulherão desses!

Dezenas de bocas gargalharam, a noite foi caindo, começou a ser servido o churrasco, Danilo desempenhando com maestria o papel de garçom, quando Zé Sergio, sacana que só ele, mandou a frase:

– Vamos mandar entregar uma garrafa de Sidra pro casal brindar à data!

Deu-se o reboliço. Em pouco tempo, a senhora do conhaque convocava os presentes para o rateio da garrafa. Recolhia o dinheiro de um, de outro, até que disse, entregando as notas e as moedas amealhadas pro Marreco:

– Já deu, já deu!
Foi quando o Zé fez cara de triste:
– Mas como vamos saber em quê quarto o casal está?
Eu, tijucano há várias encarnações, disse:
– Na Tijuca tudo se vê, na Tijuca tudo se sabe…
Seu Brasil sorriu, confirmando com a cabeça.
Liguei pro hotel:
– Boa tarde, minha senhora. Entrou aí, agora há pouco, um casal assim, assim, assado? Ela confirmou.
– A senhora pode me dizer em que quarto eles estão?
Ela disse. Ela disse!

Chamei o Danilo, entreguei a ele a garrafa de Cereser, seu Brasil improvisou um balde de gelo com o material da faxina do bar, dei as devidas instruções ao nosso portador, o Zé pôs uma nota de cinco reais no bolso do cearense e lá se foi o caboclo.

Ele pintou de volta na área menos de dez minutos depois.

– E aí, e aí?! – o coro em uníssono.

– Ele mesmo atendeu a porta. De toalha.

Explosão no bar.

Uma hora e quinze depois, vem o casal abraçado pela rua. Atravessam antes de chegar na esquina. Ele embarca o avião no ônibus e vem em nossa direção, já sorrindo.

– Como é que vocês descobriram o número do nosso quarto, pô!?

Foi o Zé Sergio, já devidamente calibrado, que de pé, à imagem e semelhança de Dom Pedro no Grito do Ipiranga, disse para delírio da assistência:

– Na Tijuca, malandro, tudo se vê! Na Tijuca, tudo se sabe. Tijuca, em estado bruto!

Edu Goldenberg é um boêmio tijucano, autor de Meu lar é o Botequim (Casa Jorge, 2005), coautor de De hoje não passa (Mórula Editorial, 2019) e mantenedor do blog Buteco do Edu, que poderia ser mais atualizado. Ah! Também advoga, ele.

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