Danilo Nakamura

Com fusilli, não há sacrilégio – pelo menos, não com aquele de parafuso. Não à toa, é o macarrão mais marginalizado dos mercados. Logo na pré-quarentena, das marcas decentes, sobraram só os fusilli nas prateleiras, sempre lá no canto longínquo, como se fosse a seção pornô de uma locadora dos anos 1990. 

Então, quando fui também me suprir de comida para evitar sair com frequência (porque não tenho poderes para mandar comprarem comida ou desligarem aquecedores por mim), me vi no dilema: de que vale comprar massa de marca boa, se a própria massa não é lá tão boa? E aí encontrei um motivo: usarei os fusilli para cometer pecados contra a cozinha tradicional italiana, sem correr tanto risco de tomar porrada.

Porque o descendente de italiano, meu amigo, ele tem tendência à insuportabilidade quando o assunto é a comida da maldita nonna. Pro neto da dona Giulia, se for mexer com macarrão, tem que mexer como mexia a dona Giulia. Maldita memória seletiva que não permite essa gente se lembrar de que a dona Giulia fazia um nhoque bosta, com farinha bosta, tomate bosta, queijo nem se fale. 

E mentem descaradamente, contam lendas que, na média, ninguém pode provar o contrário: “minha avó sabia se faltava sal no molho só pelo cheiro; lá em casa, se você cortasse a massa, minha nonna chorava; na Itália, se você pedir uma faca para o prato de massa, eles te expulsam do restaurante na hora; o certo é usar garfo e colher; um bom restaurante italiano, você julga pelo risotto ou pelo nhoque; ai, na Itália, você vai em qualquer trattoria e o vinho da casa custa 3 euros e é maravilhoso; minha nonna sabia se a massa estava cozida porque o macarrão gritava para ela de dentro da panela ‘io sono pronto!'”. Apontam o pecado culinário, mas mentem como se mentir pecado não fosse. Hereges.

AA Gill escreveu brilhantemente que a Europa é uma alegoria para as idades do homem. “Você nasce italiano: implacavelmente infantil e obcecado pela mãe. Na infância, você é inglês: cronicamente tímido, calado, fechado e feliz apenas chutando bolas, amputando a perna das coisas; Adolescentes são franceses: pretensiosamente filosóficos, embaraçosamente vaidosos, ridiculamente românticos e insinceros. Durante a meia-idade, nos tornamos suíços ou irlandeses. A velhice é alemã: ponderosa, pomposa e pedante. E finalmente voltamos a ser belgas, sem a menor ideia de quem somos”.

E a infantilidade do neto de italiano parece ter sido a única característica herdada da terra madre. Usar paletó bem cortado que é bom, ninguém quis herdar? Aquele passaporte vermelhinho só comprova os 2 mil euros que o amiguinho tinha sobrando para tirá-lo, não faz ninguém entender de comida, não. Até porque é bem difícil estragar a culinária italiana mais do que já foi estragada. Sem contar que o Pietro/Enzo ainda pede um malbecão para acompanhar. Porco Dio!

Isso tudo para justificar que ontem fiz um macarrão cometendo vários “sacrilégios”, ou melhor, descumprindo o que manda a constituição da tradicional gastronomia italiana e o péssimo purismo dos bisnetos de gente romana ou pugliesi (veja só): assei a abóbora até passar do ponto, bem molinha, meti cominho em pó, fritei paio, tasquei a ricota por cima, vish, fiz o Judas e a Maria Madalena em duas panelas, fui puta da fome e traidor da nonna. Mas como diria Deus, ou melhor, Pasolini: com fusilli, “non e’ peccato, non e’ peccato, cumpá”. Ficou bom para um caralho.

Danilo Nakamura é roteirista, consultor de bares e comandante do magnífico OTYY Drinks