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Boteco do JB

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cenas tijucanas

novos tempos, todo fim de noite tenho conversado através de um app com amigos, boa parte deles tijucanos, tanto que batizamos o papo de tijuca connection. as confidências e impressões que são trocadas anestesiam um bocado a situação e nos ajuda a manter alguma sanidade. nessa semana o edu goldenberg, um dos principais membros, desenterrou uma história tijucana com ares de surrealismo e pedi pra ele escrever sobre o causo, pra eu postar por aqui. após breve pesquisa, checou que já a tinha publicado no outro jb em 2009, quando o editor era o glorioso marechal, também integrante do nosso atual grupo. como está muito bem escrito, optei por publicá-la aqui também, sem mexer uma vírgula.

Entraram no bariloche…

Edu Goldenberg

Meu compadre Leo Boechat, pai da pequena Helena, ela que é minha mais recente paixão derramada, é testemunha auditiva (e vocês entenderão mais à frente porque não digo “testemunha ocular”) do que vou lhes dizer, sem medo do erro: na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe, e segredo é um troço que não existe. Um dia desses, há coisa de – o quê?! – uns dois anos, o maior conhecedor de cervejas estrangeiras que conheço, resolveu fazer um bonito com a então namorada, hoje sua mulher, justamente a mãe da pequena e doce Helena. Em um sábado pela manhã, fazia um tremendo sol, tomaram o metrô em Botafogo em direção à Tijuca, de mãos dadas – ele é um romântico. Leo prometera apresentar à namorada a mais fabulosa empada de camarão da paróquia. Notem bem que reside, em seu gesto, uma profunda, comovente e destemida declaração despudorada de amor. O Leo não pode nem sentir o cheiro de camarão que inicia, de pronto, um processo gravíssimo de edema agudo de glote, desses fatais. Mas vamos em frente. Saltaram na estação Afonso Pena, reconheceram o terreno – velhos, velhas, crianças, babás, vendedores de pipoca, algodão doce, o furdunço armado – e seguiram a pé pela rua de mesmo nome, Afonso Pena, rumo ao Salete. Vai daí que eu passava de carro pela Gonçalves Crespo, uma de suas perpendiculares, quando o avistei e, ato contínuo, telefonei pro Leo.

– O que faz você na minha terra? – disse eu depois do alô de praxe.
O Leo parecia uma piorra em busca de mim (eu a tudo assistia pelo retrovisor do carro).

– Onde você está? – ele disse com voz de quem não acreditava naquilo, olhando pra cima, em volta, sem êxito em sua procura.

– Na Tijuca tudo se vê, tudo se sabe… vais aonde?

E ele, depois de cochichar um “não acredito…” – que eu consegui ouvir – disse:

– Ao Salete.

– Ótimo! Ótima pedida! Siga em frente, mais 200 metros e você chega. Nessa mesma calçada. Seja bem chegado ao bairro. Um abraço! – e desliguei.

O Leo passou semanas querendo saber como aquilo se dera (e está sabendo apenas agora, lendo isso). Teve, contou-me depois a mãe da pequena Helena, um princípio do tal edema de glote com o susto que levou, susto que ele interpretou como uma invasão de privacidade, uma violação do seu sagrado direito de ir e vir, esses troços.

Mas isso não foi nada, não foi nada. Perto do que a Tijuca pode produzir em matéria de inviolabilidade da vida alheia, foi brincadeira de criança.

Contar-lhes-ei uma bem pior (ou melhor, é uma questão de ponto de visto e de ângulo de observação), que dá sólido sustento ao que eu lhes disse sobre a inexistência de segredo ou sigilo, na Tijuca. Na Tijuca, digo sem temer o equívoco, o simples e seminal olhar que anuncia a traição é princípio e prenúncio do furacão que devassará a vida dos futuros amantes, soprado pelas bocas linguarudas que são, convenhamos, uma tradição do bairro. Vamos aos fatos.

Bebia eu, há coisa de uns meses, no Bar do Marreco, espelunca comovente na esquina de Caruso com Haddock Lobo, na fabulosa companhia de Zé Sergio, numa de suas incursões tijucanas, egresso dos cafundós de Niterói. Aliás, eu, Zé Sergio e um amigo cujo nome preservarei em razão da natureza da coisa.

Falávamos sobre futebol, mulher, política, sobre a qualidade da comida que ali é servida, depois de preparada pelas mãos mágicas da Cátia, sobre a qualidade das moças que passavam, acompanhávamos atentos a movimentação do churrasco promovido pelo seu Brasil na calçada, quando nosso amigo, antecipando a despedida, disse batendo no relógio de pulso (ele é um antigo):

– Daqui a pouco tenho de ir. Faço um ano de namoro hoje, ela ficou de passar aqui pra me pegar… – e fez carinha de preocupado.

Não se passaram nem cinco minutos e chegou a moça, a quem não conhecíamos. Acenou do outro lado da rua e o malandro despediu-se, de fato. A moça, é preciso dizer para que a cena ganhe curvas e cores, era dessas de parar o trânsito e fazer o guarda engolir o apito. Dezenas de olhos seguiram os passos do casal caminhando pela calçada, na contramão do fluxo, depois que ela atravessou a rua ao encontro do namorado. Caminharam coisa de cinquenta metros e, vupt!, sumiram. Seu Brasil anunciou abanando a brasa do carvão com um leque de papel:

– Entraram no Bariloche… Rapaz de sorte!

Uma senhora que bebia conhaque de pé no balcão deu seu parecer, coçando a cabeça com um palito:

– Feio pra diabo com um mulherão desses!

Dezenas de bocas gargalharam, a noite foi caindo, começou a ser servido o churrasco, Danilo desempenhando com maestria o papel de garçom, quando Zé Sergio, sacana que só ele, mandou a frase:

– Vamos mandar entregar uma garrafa de Sidra pro casal brindar à data!

Deu-se o reboliço. Em pouco tempo, a senhora do conhaque convocava os presentes para o rateio da garrafa. Recolhia o dinheiro de um, de outro, até que disse, entregando as notas e as moedas amealhadas pro Marreco:

– Já deu, já deu!
Foi quando o Zé fez cara de triste:
– Mas como vamos saber em quê quarto o casal está?
Eu, tijucano há várias encarnações, disse:
– Na Tijuca tudo se vê, na Tijuca tudo se sabe…
Seu Brasil sorriu, confirmando com a cabeça.
Liguei pro hotel:
– Boa tarde, minha senhora. Entrou aí, agora há pouco, um casal assim, assim, assado? Ela confirmou.
– A senhora pode me dizer em que quarto eles estão?
Ela disse. Ela disse!

Chamei o Danilo, entreguei a ele a garrafa de Cereser, seu Brasil improvisou um balde de gelo com o material da faxina do bar, dei as devidas instruções ao nosso portador, o Zé pôs uma nota de cinco reais no bolso do cearense e lá se foi o caboclo.

Ele pintou de volta na área menos de dez minutos depois.

– E aí, e aí?! – o coro em uníssono.

– Ele mesmo atendeu a porta. De toalha.

Explosão no bar.

Uma hora e quinze depois, vem o casal abraçado pela rua. Atravessam antes de chegar na esquina. Ele embarca o avião no ônibus e vem em nossa direção, já sorrindo.

– Como é que vocês descobriram o número do nosso quarto, pô!?

Foi o Zé Sergio, já devidamente calibrado, que de pé, à imagem e semelhança de Dom Pedro no Grito do Ipiranga, disse para delírio da assistência:

– Na Tijuca, malandro, tudo se vê! Na Tijuca, tudo se sabe. Tijuca, em estado bruto!

Edu Goldenberg é um boêmio tijucano, autor de Meu lar é o Botequim (Casa Jorge, 2005), coautor de De hoje não passa (Mórula Editorial, 2019) e mantenedor do blog Buteco do Edu, que poderia ser mais atualizado. Ah! Também advoga, ele.

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