fbpx

Boteco do JB

Menu Close

o último old fashioned

Danilo Nakamura

Vou começar simples e direto: a enorme maioria de pessoas que têm feito diferença no serviço de bebida no país tem apenas duas características: ou é mulher, ou é gay (ou os dois). Vou continuar simples e direto: a enorme maioria das pessoas que têm feito zero diferença no serviço de bebida no país tem apenas duas características: é homem e é hétero, pelo menos da boca para fora (do aplicativo para dentro, dúvidas).

Daniela Bravin, Cássia Campos, Gabriela Monteleone, Lis Cereja, Camila Ciganda, Adiu Bastos, Yasmin Yonashiro, Ivo Arias e Cris Beltrão, Michelly Rossi, Laís Aoki, Analu Torres, Nina Bastos, Chula, Janaína Rueda. Tem macho fazendo coisa boa e direita e nova? Tem (até tenho amigos), mas dou conta paga vitalícia, em todos os bares da cidade, para quem conseguir nomear metade de homens heterossexuais promovendo bebida tão bem e com tanta relevância. (e só citei gente cujo trabalho conheço de perto)

Não é defesa barata de minoria, não. É essa galera que tem movimentado bebidas de exceção, cavado garrafas de produtores novos, feito o serviço com menos pompa e montado espaços mais agradáveis para se beber. 

Quando cheguei em São Paulo, aos 22 anos de idade, logo fui convidado a escrever sobre vinho pro jornal. O que eu encontrei foi um mercado quase inteiro de senhores engravatados, na média bem chatos, boa parte bem burra no assunto de bebidas. Tive uns 3 professores ótimos (Luiz Horta, Didu Russo, Pagliari) e conheci pouca gente mais jovem (estes sim, estudados: Bronza, Geoffroy, Bernardo Pinto, Marcel Miwa, Eduardo Milan). Mas a média era feita de filhos de médicos e engenheiros que conheceram bons Borgonhas dentro de casa, quando não os tínhamos importados por aqui. 

Quando cheguei no mercado de bares, aos 27 anos de idade, a mesma coisa: só homem, boa parte com conhecimento pífio, canastrões antigos, produtores de drinks ruins, bancados por marcas piores e perpetuados por inércia e preconceito da indústria, que não dava voz para destoantes. Se mulher bebendo já era feio, servindo era lixo. Para as bichas, um Cosmo ou Pinot Grigio bastavam.

Sabe o que aconteceu? Essa leva de viados e mulheres foi obrigada a: 1- se juntar e se ajudar (sem serem convidados para degustações, montaram as próprias); 2- se orgulhar de ser um ruído e, portanto, prover um serviço que fosse também destoante daquilo que estava há muito tempo disponível. E é daí, da acomodação masculina e do incômodo no outro lado, que surge um movimento andrógino, feminino e afeminado, que oferece coisa nova, relevante e, preferencialmente, oposta à tradição: adeus vinhos que hibernam anos em carvalho novo e caro, tchau decanter desnecessário, palavreado pomposo, coqueteleiras voando, carta de 700 rótulos, aroma de sereia. Que alívio.

Sabe o que aconteceu com a indústria de bares, drinks e vinhos? Melhorou um trilhão de vezes: as bebidas e o serviço estão severamente mais inteligentes e, uau, prazerosos. É justamente o “gauche na vida” que direcionou o serviço diferenciado.

E estes senhores, assim como seus rótulos favoritos, foram ficando bouchonée. As notas terciárias de couro envelhecido e armário empoeirado dos grandes Bordeaux impregnaram no estilo e no terno dos próprios adoradores. Como se diz em degustação, “este já está meio cansado”.

Então, quando um bartender das antigas (Kascão Oliveira) critica e demoniza “o carnaval com a venda de droga publicamente, o casamento gay, o aborto, a arte em forma de sexo explícito para nosso filhos (sic), kit gay nas escolas”, desdenha de negros e se proclama como o lado certo da história, eu sinto um feliz cheiro de velório: a morte vindoura de uma escola escrota de velhos barrigudos e safados e tiozões e cuzões, bando de Tony Cliftons falidos, mais porcos do que as unhas dos dedos que usam para provar seu Dry Martini atrás do balcão. Que descansem em paz e aproveitem a linda aposentadoria que lhes espera.

Eu entendo que moral e competência não são coisas que caminham obrigatoriamente juntas – por mais que, neste caso, pareçam ser – e pode soar como um tiro de canhão numa formiga, mas é inegável o prazer que eu sinto em saber que esta cena está morrendo: a cena que sempre teve imunidade e asco a mim, a minas e a outros gays.

A grande vantagem é que sequer é necessário boicotá-los. Estão à deriva, sustentados pelo último fio de cabelo e pelos últimos clientes Don Drapers dos Jardins – como aquele frasco antigo e ensebado de Angostura, há anos encardindo e oxidando na prateleira, esperando o último Old Fashioned ser pedido para dar seu dash final. Sobe créditos.

Danilo Nakamura é roteirista, consultor de bares e comandante do impecável OTYY DRINKS.

© 2024 Boteco do JB. All rights reserved.

Theme by Anders Norén.