Paulo Cesar Martin
23 de fevereiro de 2020, um domingo no almoço com os parceiros Júbilo, Lana e Jacqueline, foi o dia que eu nunca imaginaria ser o da minha última refeição no PASV, o restaurante com a fachada mais sem graça, o ambiente charmosamente decadente e a comida mais gostosa do centro de SP. Um mês depois, o fechamento forçado pela pandemia da Covid-19. E neste sábado, dia 11 de abril, caiu a bomba na av. São João, 1145: o encerramento em definitivo das atividades depois de quase 60 anos de existência.
O puchero dominical, o cordeiro na brasa com batatas coradas e o frango frito foram minha despedida. A sensação boa de um pedido tão perfeito se perde na angústia de não poder ir mais lá quando as ruas forem liberadas. Sensação parecida à que tive quando fechou o Parreirinha, também no centro. E quando o Fuentes saiu da rua do Seminário e foi para os Jardins.
Frequento o PASV desde 1988 quando fui trabalhar na Folha e depois no Notícias Populares ali no centro. Desde a primeira vez, a sensação foi a mesma: ver a figura discreta do Seu Ramón recebendo os clientes e sentir que eu, um descendente de espanhóis, estava entrando no restaurante do meu pai. O estranho nome PASV é a junção das primeiras letras dos sócios originais: Perez, Ares, Salcines e Villaverde. Nos últimos tempos, quem tocava eram os os irmãos José “Pepe” e Ramón Ares, este já com 80 anos. O cardápio basicamente espanhol do começo foi se adaptando às necessidades do dia a dia do centrão, mas as peças de resistência estavam sempre lá: a paella, o polvo à feira, o cordeiro na brasa, a tortilla de batatas, o arroz del puerto (um primo mais modesto da paella) e o cozido à espanhola (maneira que eles abrasileiraram o nome puchero). Se misturavam com os PFs que se acha em qualquer lugar, mas sempre com bom preparo.
Além dos pratos, muitas lembranças ficarão, espero não esquecê-las com o tempo:
– O grande balcão em “u” para os solitários.
– Seu Ramón almoçando sozinho no último lugar do balcão às 14h30.
– As garçonetes “tiazinhas”, a Maria da manhã (a que mancava) e a Maria da tarde, já aposentadas. Para manter a tradição, Dona Neusa, esposa do Seu Pepe, passou a trabalhar nas mesas.
– A infame batidinha de maracujá que o Ramón dava de cortesia para aguçar o apetite.
– A melhor molheira de cebola entre as casas que a oferecem (Sujinho, Boi na Brasa etc). O segredo espanhol: as lasquinhas sutis de pimentão verde no meio da cebola bem temperada.
– O pão cervejinha delicioso da padaria da rua Aurora para o couvert.
– A sensação de se acabar no pão com cebola e pimenta e depois não “ter espaço” pro almoço.
– O bife de fígado acebolado que me acompanhou nos meses de anemia.
– A sangria de vinho barato feita pelo próprio Ramón.
– A pimenta caseira sempre impecável.
– Pimenta do reino na mesa.
– Os quadros com fotos já esbranquiçadas de cidades da Espanha.
– O café expresso mais forte que já tomei na vida.
– Minha saudosa mãe, meu saudoso irmão, minha irmã e meu sobrinho comemorando um aniversário comigo num 4 de janeiro
– Encomendar a paella para comer em casa e o seu Ramón deixar a paellera junto para trazer no dia seguinte.
– O pudim de leite para rebater.
– E a melhor das lembranças: ter comido lá com todos meus melhores amigos.
Vendo uma tradição dessa acabar, impossível não lamentar os tristes dias que grande parte da sociedade média vive na gastronomia: a proliferação da mesmice de sabor nas cozinhas (as famigeradas “comidinhas”), a pouca variedade nos cardápios, a inacreditável falta de tempero nos pratos (coentro, pimenta e cominho são quase palavrões em SP), o salmão que virou o único peixe existente no planeta (só é “aceito” porque é peixe que não tem gosto de peixe), quilos de requeijão em cima de pratos e pizzas, temaki de queijo com goiabada, garçons hipsters, comanda eletrônica em padarias que mais parecem rodoviárias, hamburguerias que põem 10 ingredientes num sanduíche e esquecem de fazer um burguer que preste. Já temos até restaurante coreano hipster que não quase não usa pimenta para agradar o gosto médio. Tudo que nos deixa a galáxias de ser a “capital da gastronomia”.
Neste período de isolamento, gaste 15 minutos pensando em como pode ajudar a mudar esse cenário. Passada a pandemia, é a chance de frequentar menos shopping centers, de parar de dar trela a capa de revista decadente inventando bairros modinha. Vá mais ao centro da cidade, ao Bom Retiro, ao Pari, ao Cambuci, à Liberdade, não tenha medo de pisar na calçada. Não é ajudando a matar o centro que seremos uma cidade melhor. Ressuscita, PASV!
PAULO CESAR MARTIN, 56 anos
Jornalista especializado em futebol e rock. Apresentador do programa de rádio Garagem com André Barcinski, Álvaro Pereira Júnior e André Forastieri. Ex-Esportes da TV Globo-SP, ex-Notícias Populares, ex-Folha, ex-UOL. Atual caçador de frila.
Zé says:
Palmas ao Paulão
12 de April de 2020 — 13:35
Humberto Damilano says:
puxa, que notícia triste… me estragou o domingo de páscoa. mesmo sendo de porto alegre tive a oportunidade de conhecer o pasv graças ao guia da culinária ogra, livro do barcinski. a última vez que estive lá, em um domingo comi o puchero (ou virado à espanhola) sentado naquele belo balcão com tudo que tinha direito. um dos lugares que melhor fui servido em são paulo. parabéns pelo texto, melhor homenagem!
12 de April de 2020 — 13:59
alfredo teixeira says:
Cacete, que tristeza! Não me lembro de um domingo de Páscoa tão miserável!
PS – puta texto, Paulão! Feito com o coração!
12 de April de 2020 — 14:27
Daniel L. says:
Puts. Você o Barscinski me levaram lá na primeira vez. Nunca deixei de ir. Era muito do que representava o espírito da São Paulo que eu amo. A cidade fica inteira menor, mais se graça.
Brindemos ao PASV, saúde para nós.
12 de April de 2020 — 14:41
Júbilo Lattari says:
Eu compartilhei esse delicioso almoço!
Vamos acreditar na reabertura do PASV,tudo pode acontecer.
Lindo texto.
12 de April de 2020 — 15:34
Júbilo Lattari says:
Me lembro do almoço nesse dia.
Lindo texto.
12 de April de 2020 — 15:56
milton says:
Estive a primeira vez no PASV, no início dos anos 90 , por indicação da dona Fina, uma valenciana e cozinheira que fazia Paellas fantásticas. Fiquei freguês, meus filhos também. É uma perda irreparável. Além do Parreirinha, o Gouveia na antiga praça da Se, o Papai e tantos outros. Tá aí uma sugestão para uma matéria: “restaurantes tradicionais no centrão que fecharam “
12 de April de 2020 — 15:57
Raul Fiuza says:
Valeu Paulão por colocar as palavras certas que nós todos que um dia sentamos (no balcão sempre!) e fomos atendidos pela Dona Neusa sentimos…
12 de April de 2020 — 16:35
Mony says:
Paulão deixa claro. Parabéns ao texto. Espero que isso reverbere em mais pessoas de alguma maneira.
12 de April de 2020 — 16:59
André says:
São Paulo acabou, ainda existe muita coisa boa mas no geral acabou.
Os valores estão invertidos hoje em dia o “parecer” é mais valorizado do que o “ser”.
12 de April de 2020 — 17:46
Glenda says:
Um dia , há alguns anos, mandei mensagem pra você pedindo indicações de lugares pra comer no centro…E você me deu algumas opções e uma delas foi o PASV. Experimentei e passou a ser uma das minhas experiências mais legais em São Paulo, fonte de muiiiitas memórias afetivas e indiquei pra outros amigos que viveram e relataram experiências legais lá também. Sempre escolhi me hospedar no Ibis da São João ( com tantas outras opções) pensando que do outro lado da rua eu tinha o PASV. Era um luxo pra mim! Talvez quase nenhum outro conforto superasse! Falo talvez , pois conscientemente nunca arrisquei. Rs Vou sentir muita falta de comer lá ou de me lambuzar com quentinhas fabulosas que eu levava pro hotel! Aquele molho de cebola é mágico!
12 de April de 2020 — 18:05
Carlo says:
Sempre saí de Goiânia com um objetivo irrevogável: balcão, molheira de cebola, mexilhão a vinagrete e cordeiro na brasa.
Não poderia haver mais triste novidade.
12 de April de 2020 — 18:48
Bruno says:
“Passada a pandemia, é a chance de frequentar menos shopping centers, de parar de dar trela a capa de revista decadente inventando bairros modinha.” É isso!
12 de April de 2020 — 22:52
Daniel Gomes da Silva says:
Tava lendo um texto da Lilia Schwarcz no El Pais, e ele fala uma coisa interessante que estava começando a acontecer… e parou por causa da pandemia. Mas a tendência é que volte: menos é mais.
Espero que essa tendência perdure e que passamos a valorizar mais os restaurantes como o PASV (que infelizmente não cheguei a conhecer) e menos o amontoado de restaurantes rápidos, plásticos e cheio de pessoas que gostam de modinha.
Se quiser, li esse texto neste link – https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-04-13/como-o-coronavirus-vai-mudar-nossas-vidas-dez-tendencias-para-o-mundo-pos-pandemia.html
14 de April de 2020 — 23:05
Paulo says:
Xará, li esse texto com lágrimas nos olhos, e ainda com o sabor, o cheiro e a textura do puchero com aquele ovo cozido pra arrematar, na memória. Dia triste esse.
12 de April de 2020 — 23:15
FABIO LEITE says:
EMOCIONANTE TEXTO PAULÃO.
NUNCA FUI NESSE LUGAR MAS LENDO SEU TEXTO É COMO SE EU SEMPRE TIVESSE IDO .
PARABENS SOU SEU FA DESDE 2000
12 de April de 2020 — 23:45
patrycia lopes coelho says:
Puxa, que pena! Senti saudade do que não conheci, lendo seu texto. Aqui em Fortaleza seu de um bar tradicional que começou a vender antecipadamente, para ir dando conta das contas nesse período. Será que aí os frequentadores não poderiam fazer semelhante e garantir o retorno? É triste ver uma.linda tradição acabar assim. Adoro o centro de São Paulo. E em quase todas as vezes em que aí estive, hospedei-me e frequentei alguns lugares ótimos no Centro. Espero que vcs possam ajudar e que eles retornem, assim posso ir conhecê-los um dia. Abraços
13 de April de 2020 — 10:05
Marcos says:
Um tempo atrás perguntei no grupo do garagem do Facebook onde eu poderia comer um belo bife de fígado. Você não vacilou em indicar o pasv . Fui e adorei. Voltei outras vezes pelo carneiro, filé a cubana, um nhoque, etc.
Viva os pf’s do centrão!!!
14 de April de 2020 — 07:13
Tercio Santana says:
dá até uma agonia pensar que perdi a chance de conhecer um baita lugar como esse simplesmente por não ir tanto quanto gostaria ao centro de sp. quantos outros lugares não estão aí para serem (re)descobertos? nota mental pra tomar vergonha na cara e vasculhar mais o centrão assim que tudo liberar… e que baita texto o do post, não?
14 de April de 2020 — 18:57
Victor Zuri says:
Coisa bonita de se ler.
14 de April de 2020 — 19:46
ANTONIO VICENTE says:
Notícia triste. Texto lindo. Parabéns Paulão.
14 de April de 2020 — 20:21
fabio brito says:
Bem legal o texto, mesmo anunciando uma notícia triste. Quem poderia imaginar que aquele ambiente meio sombrio servia uma comida muito bem feita, diferenciada e saborosa, com preços super honestos!
Um dos meus pratos favoritos era o filé de badejo na brasa com arroz a grega, batatas e molho de de camarão, porções fartas (dava até pra 3 pessoas), tudo bem feito e delicioso. Impossível também não se lembrar da simpática e carismática Maria. Ela chegava perto da cozinha e, com a sua voz bem aguda, fazia diversos pedidos quase que na base do berro, e mesmo no horário de pico os pratos invariavelmente saíam “nos conformes”, Nunca entendi como eles conseguiam tal façanha!
14 de April de 2020 — 22:07
Bruno de Souza says:
Aplaudindo de pé, Paulão. Ressuscita PASV, Ressuscita Garagem. Emocionado aqui.
15 de April de 2020 — 18:53
César says:
Belíssimo e emocionante texto. Difícil explicar o luto por um restaurante em meio a tantas mortes de pessoas, mas espero que a sensibilidade prevaleça entre os habitantes da cidade. Grande abraço!
1 de May de 2020 — 12:34
Serginho Carnevale says:
Lindo texto. Já vivíamos momentos tristes, mas que foram amplificados com a pandemia.
4 de August de 2020 — 19:15