acho que nunca conseguirei transferir o título de eleitor, embora a vila leopoldina da minha infância tenha deixado de existir fisicamente há décadas, para habitar apenas as memórias que levarei para o túmulo.
de maneira que sigo votando no sesi da rua carlos weber de 2 em 2 anos, sempre torcendo pela existência de segundo turno, pra vivenciar em dobro a experiência antropológica.
necessária a lembrança de que o sesi era um colégio público acessível apenas para quem tinha melhor condição financeira ou influência moral no pedaço, de maneira que as portas do colégio nunca se abriram pra mim.
a escola onde estudei não existe mais. tornou-se, veja só, um centro de treinamento militar ou algo que o valha. na eleição passada fiz questão de passar na frente, dessa vez não foi possível.
meu rolê ideal de votação inclui fazer baldeação do metrô para o trem e aportar na estação localizada na esquina da longa rua guaipá – onde meu pai teve uma fantástica fábrica de lingüiças – com a imponente avenida imperatriz leopoldina, verdadeiro ícone oitentista entre nós, os bucheiros da época.
infelizmente um surto de esclerose múltipla dificultou um bocado a locomoção, a ponto de abortar a parte da missão que se refere a condução pública. não ia rolar a caminhada sob a atual sensação de ter uma imensa pança sobre duas pernas de pau. privilegiado que sou, ainda bem que tinha verba para o taxi.
se há dois anos a impressão foi a de que a rua carlos weber moemizou, nessa semana constatei que nada pode ser tão ruim a ponto de não piorar. me senti dentro de jurerê internacional, só que sem a parte da praia. aliás, nunca respirei tão mal no pedaço.
o pipoqueiro acrescentou chips de batata ao repertório do carrinho, mas não havia interessados em nenhum de seus produtos.
a seção eleitoral tava tranqüila e ignorei silenciosamente cada olhada e sussurros debochados apontando para minhas vestimentas vermelhas, máscara inclusive. curioso que o bordado no meu boné apontava uma zoeira escrita o jeito é jango!, mas o modo de vida cotidiano se tornou o túmulo da ironia e não sou eu que vou explicar uma piada que ninguém quer escutar.
papel cumprido na festa da democracia, fui ao restaurante italiano que gosto, que embora não seja mais tão novo, sempre será jovem para minhas referências. comi lulas frescas com tomate picante, delicioso joelho de porco e o único mil folhas possível nessa grande farsa gastronômica chamada são paulo.
fui embora no fim de tarde esquecendo a bolsa preferida, que o dono do lugar – que também é meu amigo – teve a imensa gentileza de me devolver no dia seguinte, com a carinhosa companhia de uma focaccia quentinha. e embora saiba que tecnicamente o pão deve ser repousado antes de devorado, pães quentinhos me comovem feito um pobre diabo.
que a possibilidade do conforto da boa mesa nos dê energia pra enfrentar o 7 a 1 de cada dia.
Diniz says:
Belo texto, Júlio!
18 de November de 2020 — 15:07
Gabriel says:
Muito legal, estamos juntos na luta
9 de January de 2021 — 11:12
Gabriel Coimbra says:
a grande reflexão da vida é que vivemos pra comer ou comemos para viver?
14 de January de 2021 — 17:28
pedro cardillo says:
belíssimo texto, JB. pergunta óbvia: restaurante italiano que gostas é o mangiare? grande abraço
18 de January de 2021 — 09:47
jb says:
sim
18 de January de 2021 — 12:42