o diagnóstico que me colocou na condição de portador de esclerose múltipla fez com que reclamasse menos da vida e também que entendesse o porque de algumas coisas terem dado tão errado. saber onde começa minha limitação faz com que o instinto de autoproteção aumente de maneira considerável.
as antenas sempre estão ligadas para toda espécie de tratamento, o que não é sinônimo de paciência para os porras dos falsos samaritanos sommelliers do mal alheio, com suas infalíveis receitas de cbd e vitamina d.
mas, como se divertir é preciso, às vezes tento uns troços estranhos, mais pela zuêra que pela provável melhora em si.
o homem é doente e não há cura para si próprio.
o sintoma mais freqüente provocado pela doença que me abate é o da fadiga e isso somado à obesidade mórbida e ao fato de respirar pela boca às vezes me causa a sensação de ser uma bomba-relógio de preguiça prestes a explodir a qualquer momento, espalhando assim pílulas de naftalina psicodélica por todo infame elevado erguido pelo dr. paulo salim maluf.
daí que nos últimos meses as pernas começaram a falhar de maneira um tanto esquisita. sem dor, apenas uma dormência que aponta para hipotética desistência do único exercício que aprecio, a caminhada. não é sempre, os sintomas pintam meio que dia sim, dia não.
então nessa semana marquei uma consulta e quero dividir a experiência com vocês, já que a primeira sessão de acupuntura a gente nunca esquece.
ao chegar, recebi um pequeno questionário, com questões sobre dores, marca-passos e outros males que não me afligem. na hora bateu aquele sentimento de dúvida. será que deveria estar ali mesmo?
logo após entregar o papel, fui encaminhado a uma pequena sala com nome de cidade japonesa que tenho muita vontade em conhecer. lá uma senhora pergunta como está meu intestino e se sinto dor na coluna cervical. se antevisse sua cara de decepção, inventaria umas lorotas. mas tentei animá-la falando sobre a em, no que ela me olhou como eu fosse um et. por fim, contei sobre o fantástico caso das sonolentas pernas rebeldes. ela perguntou como estavam naquele exato momento e disse que a normalidade reinava absoluta enquanto batíamos o frustrante papo. respirou fundo, pediu pra me deitar na maca disposta no meio da sala tokyo e me informou que já voltava, ela.
voltou armada com generosa porção de agulhas e enquanto escutava o som ambiente com uma espécie de richard clayderman executando dire straits, ela espetou diferentes membros do meu corpo, tais como pés, pança, nunca, ouvidos e a cabeça que deve ter me deixado com aspecto de figurinista de hellraiser, o que não pude conferir pelo motivo de ter ficado sem graça em pedir um espelhinho.
sai de cena a senhora e entra na sala uma simpática massagista cujo toque deixava a impressão de que queria arrancar pra fora da galáxia meus braços e pernas. também pergunta sobre intestino e coluna, ela. após decepcioná-la com a resposta, pergunto se é normal a massagem doer. sua resposta é que shiatsu é pra doer mesmo, que tira as energias ruins do corpo, que hoje não é dia de massagem relaxante, etc. me resumi à óbvia insignificância, não abri com ela que achava que shiatsu era nome de raça de gato e suportei silenciosamente as duas horas seguintes. homem não chora, assim dizia meu saudoso pai.
sai de cena a massagista e entra na tokyo um senhor alto e bem humorado que se apresenta como quiroprata, enquanto clayderman se empolga no solo de piano de interessante versão de easy lover, sucesso oitentista de phil collins. me colocou em posições em que nunca estive antes e provocou estalos que não pensei que fossem possíveis, enquanto gargalhava em voz alta, o homem. admito que essa foi a melhor hora não só da sessão, como do dia. e se vivêssemos somente das melhores horas do dia? será que daríamos seu devido valor, sem a sonolenta curva vonneguttiana que guia nossos destinos?
todo espetáculo pede por um grande final e a roteirista do consultório sabe das coisas. a senhora volta e sussurra algo que entendi como vou buscar seu chá e já volto.
ora, bolas. se tem algo que aprecio é boa bebida e nessa hora me empolguei. sentei no banquinho na frente da maca e imaginei nossa heroína na frente de um pequeno caldeirão temperando água quente com ervas orgânicas e especiarias contrabandeadas.
10 minutos ela volta à sala tokyo sem nenhuma xícara à mão e pede pra eu me deitar novamente na maca. diz que agora é a hora de alinhar meus chacras. não basta não entender o que a outra parte diz, tenho que interpretar erroneamente. eu e minha incorrigível surdez de velha da praça é nossa.
com um objeto que não pude identificar em suas mãos, ela se movimentou ao meu redor de uma maneira que me remeteu a exótico curandeirismo, pelo menos foi essa a minha grosseira percepção.
tudo isso demorou um pouco mais de 3 horas. luzes acesas e a protagonista da história disse que não tenho nenhum problema físico, mas sim energético. ainda fiz papel de bandido de mim mesmo.
na saída passei por um guichê à esquerda e paguei o cachê a um senhor que falou domingo vai dar covas, como se fosse mestre bidu.
se me arrependi em ter ido? de maneira alguma. salve, salve as pequenas diversões que a vida nos proporciona. nessa semana inclusive devo procurar uma taróloga. desde que joguei cartas com plínio marcos, acho tarô o maior barato.
Guilherme says:
Muito boa escrita, atento aos detalhes, que nos faz sentir dentro da história…
melhoras.. saúde!
1 de December de 2020 — 01:54
Tati says:
Mestre bidu, seria joão bidu kkkk
Adoro seus textos carregados de sensibilidade e ironia. Melhoras!
5 de December de 2020 — 02:15
Gabriel Coimbra says:
Vai voltar para outras sessões?
14 de January de 2021 — 17:25