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Boteco do JB

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vinho natural

Danilo Nakamura

Qualquer pessoa que goste muito de algo ou de alguém é um idiota. A idolatria é a arte de se declarar um retardado sem reconhecê-lo, é uma entrega cega e constrangedora, feita em tatibitate travestido de conteúdo. Isso serve para Beliebers, Little Monsters, corinthianos, crentes, feministas e fãs de vinho natural – especialmente para estes últimos.

Semana passada, o Radiohead foi aplaudido depois de passar três minutos afinando os instrumentos: os fãs acharam que era uma música nova. Não sei como, depois disso, não houve o maior suicídio coletivo da história. Eu adoro o Radiohead. Mas depois de tanto tempo produzindo dissonância (boas e ruins) e tentando quebrar conceitos de musicalidade, criou uma legião de gente que referenda qualquer bosta que a banda tocar. Veganos têm isso com comida vegana: a simples existência implica a excelência. “Nossa, que delícia este vômito verde!” Com vinho natural, a chave é parecida, só muda a bandeira.

A ideia dos naturebas é legal, vem na contracorrente dos anos em que produtores corrigiam qualquer coisa que julgavam defeito e homogeneizaram as prateleiras com vinhos barbies, todos supercorrigidos, feitos para ganhar campeonato, robozinhos de passarela. Foi a era dos fruitbombs, dos malbecões, dos purês de carvalho, dos vinhos de 100 pontos do Parker, dos (excuse my french) supercarmenères.

Mas defeito é bom (e eu gosto), um nariz grande, uma barriga, uma falha na sobrancelha. É charme positivo, é o que faz a gente amar (em vez de só gostar), é o que faz olhar de novo, repetir a prova e, muitas vezes, ficar de pau duro. É aquele rastro de cabelo que escorre pela nuca, uma penugem que cruza o limite onde o cabelo terminaria e te faz descer os olhos e enxergar para além de onde a blusa deixa.

O defeito do vinho natural foi idolatrar o próprio defeito – o que abre um precedente terrível para qualquer aventureiro brilhar: quanto mais der errado, melhor. Só que existe uma linha perigosa que separa o charme do incômodo. A partir de certo nível de estranheza, quando acaba a sutileza, o charme se perde em fetiche – logo, só servirá para os fetichistas.

Um traço de brett equivale àquela batida de dentes, quando, de tanto tesão, o beijo é desajeitado. É um incômodo gostoso, faz sentido. Um suco de brett (como é boa parte dos ícones naturebas) equivale a cocô no sexo (e na taça). Pegue um fãzoca de vinho natural numa degustação e note, é uma enoescatologia sem fim. Acabou o tesão na fruta. Vinho não pode mais ter cheiro de uva fermentada. Tem brettanomyces? Ótimo. Redução? Tanto melhor. Cheiro de merda? Super Trunfo!

É uma métrica de pensamento bastante infantil, como quando eu entupia a pizza de ketchup e não sentia mais gosto de nada. Eu tinha 7 anos.

O nível é tão baixo que os vinhos chegam a espumar na taça, estão cozidos, avinagrados, refermentados, nas coxa, na chinela. Fedem a bodegas sujas porque, de fato, são – a higiene em algumas cantinas naturebas é estarrecedora. Mas quem se importa com aroma de rato? Quem se importa se aquilo é tão tóxico quanto os pesticidas? Não serve nem para aguar a parreira, capaz de matar a vinha velha do coração, de decepção, como o filho que abandonou os bons modos herdados da família. Mas o importante é que não contenha sulfitos, né?! Aí sim é vinho de verdade. (P.S.: dizem que o próprio Philippe Pacalet, a Lady Gaga dos vinhos naturais, diva dos jantares enointeligentes, adiciona sulfito para exportar suas garrafas – senão desanda tudo no navio)

O engraçado é que metem o pau em vinho manipulado, dizem que tem cheiro de plástico, de químico, de qualquer coisa. “Não exala a expressão do terroir e da natureza.” Mas, como o louco que não rasga dinheiro, nunca vi bebedor natureba negar um Petrus 82, um Margaux-zinho, aquele Cheval Blanc 47. NUNCA. O que me diz algo claro: o natureba olha para os vinhos naturais com os mesmos olhos que um enófilo idiota olha para os vinhos de 100 pontos, com idolatria: tem tudo que o Parker (qualquer que seja ele) falou, é automaticamente bom para um caralho. É o clichê do bem e do mal serem, no fundo, irmãos brigados – tão diferentes, tão parecidos. Ambos deixam de beber vinho para beber conceito – um troço que só é bom do copo para fora, da boca para fora. É para contar na firma, no dia seguinte.

É triste porque tem produtor sério e bom para cacete fazendo a parada. Há grandes vinhos naturais – e que jamais precisariam deste rótulo para se bancar. Fosse eu o produtor, negar-me-ia a ser tachado do mesmo nome, inventaria outro: tipo, sei lá, vinho bom. É o que deveria ser. Quem se garante na qualidade não carece de bandeira – já ouviu alguém justificar que Romanée-Conti é biodinâmico? Pois é.

A essência dos vinhos naturais (e do Radiohead) era fazer algo iconoclasta, contestador, que assumisse os defeitos, mostrasse a beleza da barba malfeita. Era um trabalho de assinatura. É uma pena que a assinatura tenha virado um rabisco.

Danilo Nakamura é roteirista, bartender, comandante do excepcional OTYY Drinks e escreveu o prefácio da Mão que Balança o Copo

texto publicado originalmente no site Edifício Tristeza

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