do que você mais sente falta do velho mundo antigo que não voltará nunca mais?
já escrevi aqui que o que mais quero é voltar a frequentar balcões de sushi ya e izakaya, se de alguma maneira meu bolso permitir. até porque a distância entre os lugares deve aumentar e quem pagará por isso é o freguês, a corda sempre estoura no comensal.
mas nos últimos três textos dissertei um pouco sobre insônia, sonambulismo e gritaria na madrugada, o que me arremessou direto a uma lembrança ocorrida no final do milênio passado.
muito antes da chegada da lei seca eu já nutria simpatia pela causa da boêmia doméstica, onde o aldeão não sai de seu bairro para beber.
bar bom é bar perto.
natural que o processo de reconhecimento de território selecione os preferidos de cada um. como a juventude me proporcionava uma sede voraz, tinha um eleito para cada período, inclusive pra aquele campari esperto antes do meio-dia, se assim achasse conveniente. a maior parte desses lugares nem existe mais. se hoje escrevesse um guia de preferidos, provável que o livreto se assemelhasse a um melancólico obituário.
envelhecer é ver o mundo tal como se conhece esvair-se das próprias mãos, tal como aquele velho copo de cerveja quente no balcão do bar que ninguém mais quer. estamos todos destinados ao esquecimento.
mas as noites de sexta-feira eram especiais. capitaneados pelo santista gelson mendonça – a cuja memória dediquei edifício tristeza – a boêmia começava por volta das 20h e terminava só quando raiava o sol.
muito, muito álcool, com o onipresente whisky como gole condutor. pasteis de couve com gorgonzola bem alimentavam os vândalos, entre um amendoim e o jiló frito.
acho que era por volta das 3h que tinha a primeira sessão de 15 minutos de sono na mesa do bar, sem mover um músculo do rosto. todos na mesa respeitavam o ritual e quando acordava boa caipirinha já estava disposta na minha frente. tal ato se repetiria de hora em hora até o momento da inevitável despedida.
dormir na mesa de bar é sagrado e que saudade tenho daquele sono!
Leonardo says:
o guia-morto de bares, com toda sua melancolia, seria muito mais interessante que absolutamente todas publicações do gênero atualmente em circulação
20 de June de 2020 — 13:59