o crítico saul galvão diz que o cardápio é o contrato entre freguês e restaurante. a ele dou razão e acrescento que tenho certo fetiche pelos tais escritos.
sentar no salão do restaurante e abrir o cardápio é ato ritualístico pra mim. reparo em tudo: cocktails, vinhos, cervejas, couvert, entrada, principal, sobremesa, café.
se estou num lugar que aprecio, consumo o máximo que puder e passo bom tempo no local. gosto de acreditar que a experiência adquirida durante os anos de estrada faz com que eu passe pela maior parte de cursos possível sem me empanturrar, nem gastar um rim.
mas a real é que o fato de ter me tornado conhecido no segmento por falar mal quando a experiência não é boa fez com que me tornasse aquela velha figurinha carimbada com comandas marcadas durante o trajeto entre salão e cozinha. comigo só dá ruim quando o chef é desatento ou bem ruim mesmo. até porque geralmente 90% da comida é preparada antes do restaurante abrir. mas é inegável que um cuidado especial na hora da finalização faça senhora diferença.
daí que, como as coisas vão dar certo pra mim mesmo, passei a não sacar o celular do bolso e reparar com atenção ao ocorrido em minha volta. mais interessante que a pífia atualização do scarfacebook é ver que enquanto estou com a melhor parte do peixe, a moça da mesa 23 que pagou o mesmo que eu recebeu uma pontinha minguada do mesmo bichinho.
a regularidade total não passa de uma utopia e é fisicamente impossível que a comida venha igual pra todo mundo. mas há de se ter um piso de excelência em todo serviço, esse é meu principal critério de avaliação. pode me tratar bem, que eu gosto e agradeço, mas não se esqueça da moça da 23.
uma vez ela sentou bem ao meu lado e fez os mesmos pedidos. enquanto era atendido pelo elegante maître, um esforçado cumim anotava de maneira atrapalhada seu pedido. com pouco dinheiro, pedi um jovem vinho argentino, enquanto ela foi de francês classicão que, pela aparência da garrafa, me pareceu servido em temperatura inadequada. pra mim, o sommelier da casa se desculpou por não ter o rótulo menor que eu pedi (descrito por ele como um jovem com potencial sedutor) e me ofereceu como cortesia um italiano maravilhoso, ainda melhor que o francês do lado. e ainda me serviu um negroni sbagliato, pra beber enquanto o vinho decantava e eu comia o couvert com pães quentinhos e bom azeite, acrescido de simpático embutido artesanal como agrado.
ambos pedimos a mesma entrada, foie gras. pra manter o nível do vinho que beberia a seguir, pedi pro garçom uma taça de sauternes pra acompanhar. o sommellier veio à mesa com uma garrafa de safra melhor que a solicitada e encheu a taça até quase transbordar, chegando a ser deselegante. ela foi de água mesmo. mas o que mais chamou a atenção foi a diferença de tamanho entre os escalopes. enquanto o meu dispensaria até o pedido de um principal – dependendo do tamanho do apetite – o dela mais parecia um petit four.
pra segurar a potência dos vinhos, carne cozida lentamente pra mim e algo que parecia um coq a vin pra ela. meu prato delicioso, já ela parece não ter dado muita sorte, dado o aparente exercício mandibular observado. sobre a nobre garrafa, tive que insistir pro time de 3 profissionais de salão à minha disposição que eu era capaz de me servir sozinho. já a moça não precisou convencer ninguém de sua destreza em encher a própria taça, já que até o cumim havia sumido. mas infelizmente ela não conseguia pedir outra água, toda paz tem seu preço.
minha sobremesa foi uma decepcionante e pouco aerada mousse de chocolate. como disse, a maior parte da comida já está pronta e tem coisa que não há boa finalização que resolva. e o espresso estava intragável, porque não se aprende a lidar com café da noite pro dia e esse é um detalhe que poucos restauradores dão atenção.
a moça simplesmente pulou a última etapa do jantar e pediu logo a conta. quando o jantar dá muito errado é natural que se desista no meio. antes de ir embora, olhou pra mim com muito ódio, pra eu me colocar no meu lugar e ver de quem era de fato o maior derrotado da noite.
nunca mais a vi, mas a partir desse jantar sempre que resenho um local é nela que penso, é pra ela que escrevo e sempre buscarei sua aprovação. espero que esteja bem e que suas experiências gastronômicas sempre sejam melhores que a da noite em que nos conhecemos.
Ludo says:
Jota, perdão fugir ao tema do texto (que tá show aliás), mas eu fiz um pequeno post sobre seu blog, e depois de pensar um pouco e ficar com aquela vergonha básica, achei que seria legal te mandar. Aqui: https://brasiliasecreta.blogspot.com/2020/06/falando-em-blogs-boteco-do-jb.html . Espero que curta! Abs
2 de June de 2020 — 13:33
jb says:
obrigado pelo texto e siga escrevendo. você leva jeito.
2 de June de 2020 — 15:39
Ludo says:
Eu fico extremamente feliz que você tenha lido e gostado. E obrigado pelo elogio! Pode ter certeza que continuarei escrevendo. Abraços!
2 de June de 2020 — 18:17
Max says:
Todos nós já fomos a moça da 23 em algum momento da vida. O que estabelecimentos assim pensam que estão fazendo? O público a quem eles devem agradar é a massa, seu público de fato, as pessoas que vão lá e esperam bom atendimento. Por isso que eu sempre tenho pé atrás com caras que sem dizem críticos gastronômicos. Você descreveu muito bem o motivo pelo qual nem sempre são fontes boas.
2 de June de 2020 — 13:36
Ana says:
Tenho pedido muito delivery devido à pandemia. Pego muitas dicas no Instagram, inclusive dicas suas. O que tem me decepcionado às vezes, é que o que chega para mim, nem sempre condiz com o que influentes recebem. O que faço é cortar o restaurante da minha lista.
2 de June de 2020 — 20:07
Evelyn says:
Jota, é com pesar que garanto o diferencial tanto no atendimento quanto na comida que chegava para você n’A Casa do Porco. Às vezes o tempo de espera por uma mesa era menor (e não apenas por estar sozinho), na maioria das vezes era servida a barriga do porco (parte quase que reservada para mesas especiais), além de outros privilégios que não sei se devem ser citados.
Enfim, acho digno pontuar. Sei que você é respeitado (e temido) no meio gastronômico, mas não sei se os comensais sempre tem plena clareza da diferença entre uma experiência e outra, além do fato das relações pessoais estabelecidas ao longo dos anos serem, no mínimo, vantajosas (resumindo: atendimento, comida e bebida muito acima da média, quando não de graça).
5 de June de 2020 — 23:08