houve uma época em que éramos vivos e alguns de nós frequentávamos pizzarias.
eu, lapeano incorrigível, sou freguês da famiglia lucro desde a tenra infância, apesar de discordar dos altos preços praticados na casa.
acontece que quando se trata de comida a única coisa que não se combate é a lembrança afetiva e ainda trago comigo boas lembranças, apesar de ter saído do bairro há alguns anos.
o lapeano sai da lapa, mas a lapa não sai dele.
por cerca de 7 anos morei na frente da pizzaria da família que prepara o clássico disco no mesmo bairro desde a década de 30, quando pizza se vendia na lata.
até o fim do milênio passado pouco se falava na cidade sobre fermentação natural, tomates italianos, etc. e tenho a impressão que a lapa resiste a esse tipo de novidade até hoje, salvo uma ou outra exceção.
a tentação de ter que apenas atravessar a rua pra comer a pizza – aqui sempre de massa fina – me levava lá toda semana nesse período em que morei tão perto.
levava minha garrafa de vinho ou ficava na cerveja, se optava pelo bom frango à passarinho da casa e lá ficava horas paquerando o cardápio – que tem algumas roubadas, mas quem é da área sabe driblá-las – e observando curiosos hábitos das tradicionais famílias lapeanas à mesa.
paz e harmonia nem sempre reinavam no salão que tinha um dos melhores garçons da cidade, um octogenário corintiano. infelizmente nem todos pais e filhos davam a devida atenção pro velho, preferiam dar aquela brigadinha de leve.
só existia um consenso no espírito de torre de babel incorporado no salão: a lata de azeite. como gostávamos daquele maldito gallinho, tão indiferente a vidros com baixa acidez. extravirgens nunca nos interessaram, nossa putinha enlatada era e bastava.
quer dizer, isso até o dia em que a família aderiu à modernidade, com assépticas garrafas abastecidas de um infame líquido amarelo que não interessava a ninguém da quadra. mas não se brinca com esse tipo de tradição.
gordas senhoras berravam do alto de seus vestidos floridos enquanto crianças ranhentas choravam e homens magros trajados com camisas compradas na rua doze de outubro xingavam o dono da espelunca.
não parei de ir à famiglia, mas agora só ficava no frango, por solidariedade à antiga e briguenta freguesia. e gargalhei como satanás ao presenciar a ocasião em que um senhor sacou de seu paletó cinza velório uma latinha daquelas menores de azeite. o velho garçom corintiano fingiu que não viu e foi até o outro lado do salão fazendo a egípcia. duvido que tenham cobrado a rolha.
por fim, um armistício. pra fazer companhia às renegadas garrafas, as latas finalmente voltaram. não preciso dizer o que sai mais.
assim que a pandemia acabar, voltarei ao logradouro pra mandar uma de aliche – sem queijo, evidente – e ver se tudo segue pela ordem.
Isadora says:
Saudades da época em que morei no alto da lapa e comia a pizza da famiglia muitos finais de semana. Infelizmente fui pouco ao salão. Foi uma adolescência boa. Deve ter sido ótimo morar em frente!
Novamente, agradeço pelos seus ótimos textos que tem me acompanhado todo dia nessa quarentena.
16 de April de 2020 — 12:02
João says:
Belissimo texto. Famiglia Lucco sempre acolheu nossa familia…
Vários aniversários e outras datas comemorados por lá; Me lembro bem da pizza de Siri, e do garçom corinthiano mencionado – meu pai, palmeirense fanático, fingia ser alvinegro para não comprar briga…
até hoje, almoçamos aos domingos na “Villa” na Tito. Cardapio com tudo: nada incrivel, nada terrível… ótimo atendimento.
16 de April de 2020 — 15:02