quando se tem mais passado que futuro viver também é um ritual de despedida de coisas e memórias, enquanto se marcha em direção à inevitável morte.
ontem soube do falecimento do seo ângelo, que comandava um carrinho de cachorro-quente na frente do shopping center lapa desde 1963.
seu sanduíche vem de uma época pré batata palha, ervilha, reboco. e era o único dog com purê possível. esse que por sua vez leva cheiro-verde e é feito diariamente.
o tempo do verbo está correto. não era, é. pois seu filho está à frente da operação há bom tempo e deve seguir com a mesma competência de sempre, além do respeito à tradição. é isso que todos esperamos.
cresci nas ruas da vila leopoldina, onde jogava taco e catava no gol em peladas que ficaram nos anais da história. sempre que estreava um filme dos trapalhões eu e minha mãe pegávamos o 8615 em direção ao centro – ou à cidade, como diziam os antigos operários – e descíamos no último ponto da brigadeiro gavião peixoto, próximo à praça que desemboca na doze de outubro, rua comercial com várias lojinhas de roupa, numa das quais trampava uma gatinha loira com mancha na perna que nunca deu bola pra mim e logo depois se tornou fenômeno televisivo. ela foi de táxi, eu segui de busão por mais um tempo. mas, seguindo o trajeto, antes de chegar no shopping, na frente do corpo de bombeiros, ainda existe a excelente pastelaria aurora, onde mandava uns 3 de pizza antes da sessão da tarde. outra hora escrevo sobre esse templo.
filme visto, era depois que vinha a maior recompensa, o ponto alto do rolê. como eu gostava daquele cachorro-quente, puta que pariu. comia pelo menos dois, essa é uma das melhores lembranças afetivas da minha infância. às vezes ainda volto lá, discretamente.
e agora seo ângelo se foi, após quase 60 anos de serviço na mesma rua, alegrando a vida de tantos como eu, que cresceram à sua sombra. difícil imaginar um ofício mais digno, especialmente nesses tempos em que riquinhos fingem que trabalham, abrindo bares e restaurantes bem abaixo do medíocre como se não houvesse amanhã, após uma ou duas semanas de estágios bobos em cozinhas estreladas onde não aprendem porra nenhuma, devido ao desrespeitoso pouquíssimo tempo trabalhado. e não coloco a conta da comida ruim nos clientes que fingem que comem, porque quem serve deve ter honestidade e ser pessoa honrada.
honra que nunca faltou ao seo ângelo, esse gigante. há alguns anos tive o privilégio de agradecê-lo pessoalmente por alguns dos momentos mais felizes dos meus primeiros anos e aqui fica o registro público, além do abraço fraternal em toda sua família.
obrigado, seo ângelo!
Leonardo Ribeiro Janiques says:
Muito bom Jota Bê! Muito bom! Eu vi um vídeo em que você entrevistou o filho do Seo Ângelo. O vídeo sobre gourmet e não gourmet! Te admiro muito! Bons textos, sempre!
6 de February de 2020 — 10:11
allan says:
que coisa. passando pelas ruas da lapa, pensei no seu ângelo ainda essa semana. sou de uma outra geração, mas ainda peguei uma boa fase dele na ativa, lá pelo começo do milênio. quandoli pela primeira vez sobre esse cachorro-quente em seu antigo endereço virtual, julio, há uns bons anos, fiquei surpreso: na minha cabeça só eu dava valor para essa iguaria. inocente. obrigado ao seu ângelo pelas memórias e que se mantenha a tradição.
6 de February de 2020 — 10:33
GM says:
“e não coloco a conta da comida ruim nos clientes que fingem que comem, porque quem serve deve ter honestidade e ser pessoa honrada.” Polêmico. E muito verdade também.
6 de February de 2020 — 10:49
RICARDO SIMÕES says:
Prezado, tenho me deliciado com este seus textos aqui nesse Blog (??)
Muito bom mesmo.
Abraço.
6 de February de 2020 — 16:14
Eden says:
Memória afetiva e um negócio louco indicamos seu Ângelo pra um amigo q trabalha na lapa o dia inteiro , ele me falou que não viu nada demais. Da uma sensação de tristeza por que as perspetivas são diferentes.
Meu primeiro dog foi na USP é normal mas lembro do meu velho.
6 de February de 2020 — 20:11
Fernando Souza Jr says:
lindíssimo texto, emocionante, eu também batia ponto em cinema de rua, em Santo André e São Bernardo, para assistir aos filmes dos Trapalhões. Quase sempre junto ao meu querido tio Ricardo, de quem infelizmente já me despedi, definitiva e precocemente, há cinco anos. Adorei também a anotação sobre a gatinha que foi de táxi – também cria do ABC Paulista, diga-se. Só craques do ofício de escrever não perdem o humor mesmo na feitura de um texto que trata de questões tão sensíveis. Abraço
6 de February de 2020 — 21:33
Cleber Lima says:
quando se tem mais passado que futuro viver também é um ritual de despedida de coisas e memórias, enquanto se marcha em direção à inevitável morte.
Espetacular. Que texto !!!
6 de February de 2020 — 21:47
Bruno says:
JB, você chegou a comer o dog de um gringo (acho que era chileno) que ficava entre a ponte e o Mercado da Lapa? Lembro que era R$ 0,50 centavos o dog, lá nos idos de 1999/2000.
7 de February de 2020 — 14:20