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Boteco do JB

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coelho com cenoura

escrever um livro do meu jeito é acima de tudo um exercício de resgate de memória. foi assim com meus quatro títulos publicados e a história se repete agora que tento escrever um livro de receitas crônicas. a situação exige até mais atenção, já que lido também com lembranças de odores e sabores, alguns de infância.

em 2005 criei um prato de páscoa no meu último restaurante. coelho com cenouras. pensamento infantil, eu sei. mas era gostoso. o problema é que não me lembro exatamente como eu o preparava. o caderno de receitas que habita minha mente tem a média de uma página apagada por dia. lançar esse livro será uma corrida contra o tempo.

daí quando vi que o lugar de um cozinheiro mais jovem servia algo parecido fui lá conferir. de alguma forma sempre se aprende com os mais jovens, mesmo que seja o que não fazer. embora, após algum sacrifício, já tenha me lembrado quase que por inteiro como eu preparava o prato, inspiração sempre cai bem e pode até ajudar a atualizar o prato. além do mais, não posso esquecer que quem vai cozinhar não sou eu, mas sim o leitor. grande responsabilidade.

pois lá vamos nós para o condado faria limer. salão ok e equipe muito simpática, começamos bem.

a carta de cocktails, onde predomina parceria com gim brasileiro tosco e as marcas que a diageo pede pra colocar é um convite à sobriedade, mas a oferta de copos de vinho é boa, até sidra tem. quem quer beber bem se vira.

infelizmente o garçom de largada já avisa que o coelho tinha acabado. embora tenha ido lá pra isso, já passava das 15h de um almoço dominical, é compreensível acabar. fica pra outro dia. mas agora precisava almoçar.

boa parte do cardápio, com excesso de espumas e esferas, é um tanto datado e constrangedor. como se fosse uma coletânea do pior da carreira de felipe bronze. pra pedir, é preciso fugir das roubadas. tem que tentar o dibre, luciano! assim dizia o jogador preferido do maradona para um saudoso locutor esportivo ao vivo na bandeirantes, o canal do esporte.

patê de fígado de frango é algo que adoro e onde tem o peço, assim o fiz. uma pena que o que veio foi uma instalação romerobrittiana com tanta poluição visual e tantos ingredientes que o que menos se sentia era o gosto do patê. uma catástrofe tão grande que poderia ser servida no tuju. claro que não comi nem metade. se for pra engordar, que seja por comida gostosa, não por esse tipo de coisa.

como principal, algo que prometia no cardápio ser um socarrat de canjiquinha com lula, timo e favas – excelente ideia, que remete à origem mineira do chef – não atingiu o ponto desejado que denomina o prato. problema de execução ou medo do fogo? não sei. o mais importante é que tava muito gostoso, apenas mudaria o nome.

nisso olhei em minha volta e observei o perfil da clientela, que parecia ter saído de uma festa de música eletrônica em jurerê internacional. ninguém ali dá a mínima pra comida. zumbis abduzidos pelas selfies tiradas de seus celulares, suas almas foram raptadas por malditas mensagens de áudio. aí fica difícil cozinhar mesmo. como se equilibra boa comida com viabilidade comercial para esse tipo de público?

a sobremesa com goiaba parecia inspirada naquele confeiteiro bacanudo francês, cédric grolet. tava gostosa, comeria de novo. e tinha café espresso e bom café coado, fui no segundo. os sócios caíram no xaveco da indústria de bebidas, mas não do café de cápsula. ponto pra eles. há esperança.

antes de ir embora, um dos jovens sócios se apresentou pra mim com timidez e elegância, disse que a casa tinha apenas 45 dias, o que eu não sabia. deveria ter feito a lição de casa antes de sair, minha responsabilidade. mas a obsessão pelo coelho me cegou.

todos foram tão gente boa comigo que considerei não publicar sobre o assunto, mas não resisti ao texto, que já se desenhava na minha cabeça desde a chegada do abominável patê de fígado.

muito restaurante recém-inaugurado, grande parte deles comandado por gente nova. a época não é de colheita, mas sim a de dar tempo ao tempo pra se acertarem, enquanto se prestigia os lugares bons de fato. acho que esse é o caminho, raras exceções.

o benza me parece ter o principal: um chef que sabe cozinhar. meio estranho escrever isso. o que deveria ser obrigação de todos é tão incomum no novo cenário millenial paulistano que soa como elogio. mas é fato. e seu pequeno restaurante se enquadra na categoria promissor. estimo a melhor sorte do mundo a ele e espero voltar em breve. quem sabe pra comer um coelho?

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