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Boteco do JB

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Month: February 2021

a conta

ainda não pendurei os quadros, mas as plantas em geral até que vão bem. ontem, ao voltar ligeiramente ébrio de um balcão de bar onde bebi doze ótimo drinques, conferi a caixa de correio e me deparei com seis contas de luz vencidas, então imagino que devo morar aqui há uns sete meses. o porque do moço da eletropaulo não ter cortado a luz é um mistério, porém aproveitarei a sorte de ter grana pra dirimir a dívida e pagarei tudo amanhã, espero que a lotérica aceite as conta tudo.

onde bebi? embora haja pelo menos dois bares de cocktail que quero conhecer, fui num porto seguro e me dei muito bem. quem me acompanha em outras mídias bem sabe sobre qual balcão escrevo agora, trata-se de um dos bares mais subestimados e menos falados da cidade. talvez porque ali o foco esteja mais em atender direito a freguesia que em aparecer. e pro pessoal do network pouco importa o que está dentro do copo.

porque trabalhar com comida e bebida é o sagrado – e às vezes chato – ato da repetição, que passa a milhas e milhas de distância do glamour da televisão e das breguíssimas premiações recheadas de tapinhas nas costas. quer dizer, pelo menos pra quem é sério.

nessa semana mesmo morreu um dos melhores e mais generosos cozinheiros que já conheci e não saiu nota no jornal nacional.

bolinha atuava em santa tereza e deveria ser tombado como patrimônio imaterial de belo horizonte, cidade onde aliás se cozinha muito bem.

na calçada do outro lado da rua de seu botequim – na frente de um hospício – bolinha ofereceu uma das melhores refeições da minha vida. teve costelinha com jiló, língua com purê de batata e rabada. esse guloso que vos escreve jamais se esquecerá dessa tarde.

quer homenagear a memória do bolinha e o trampo do bartender kacio citado há cinco parágrafos?

simples, cozinhe ou faça drinques pensando no produto e na alegria que isso pode proporcionar às pessoas, não em afetações alheias ou em storytelling.

vou ficando por aqui pois essa perda me deixou triste pra caralho. nessa semana, além de pagar as contas, pretendo dar um jeito na porra dos quadros. espero não falhar de novo.

e lembre-se que pra cada poser existe um sujeito legal., que quase sempre está a margem do mainstream. prestigie-o enquanto é tempo.

o chef gargalhada

meu nome é júlio bernardo e gasto quase todo meu dinheiro com comida, bebida e viagens. minha condição clínica – além da obesidade mórbida e dos previsíveis problemas de meia idade a vida me deu um adicional de esclerose múltipla – sugere que frequente lugares fresquinhos. o apartamento para o qual me mudei é super arejado e já perdi as contas de quantas vezes considerei me mudar pra gonçalves, no sul de minas gerais.

quando soube que um chef de cozinha comandava um bistrô dentro de sua própria pousada de alto padrão em monte verde me virei pra conferir a parada, apesar das tarifas parisienses. até porque, como cronista gastronômico, gosto de conferir desde o ótimo carrinho de cachorro quente do seo ângelo até o excelente tiramisù do fasano. a meta sempre é passar bem.

não foi problema resistir aos temíveis sargados de estrada durante a viagem de 3 horas, perante a possibilidade de comer algo preparado pelas mãos do chef assim que chegasse, o que ocorreu às 22h30 de um sábado. tarde para o menu degustação, eu sei. mas nem era essa a intenção, só esperava ser recebido com algo quentinho, mesmo que uma sopa ou talvez um sanduíche. até porque o chef sabia da hora da minha chegada e tanto salão quanto cozinha trabalhavam a todo vapor enquanto me dirigia à recepção.

mas não ofereceram nada de comer. pra beber, uma garrafa de champagne e café nespresso à vonts no quarto. aliás, o lugar é todo cercado por máquinas de cápsula. fui dormir com fome na confortável cama. dorme que passa, assim diria minha mãe. e ainda sonhei com um risole de calabresa com catupiry tirando onda da minha cara rindo com a voz do chef.

no dia seguinte pude ver a beleza do terreno da hospedagem, cheio de árvores altas coisa e tal. meu cachorro tocou o terror no galinheiro e o ar me rejuvenesceu uns bons dez anos. com o estômago roncando, fui tomar café.

ou melhor, o entorno em volta do horroroso café de quinta categoria servido. pães apenas ok – mas que o sorridente chef fez questão de frisar que eram de fermentação natural – frutas, razoáveis embutidos regionais e, justiça seja escrita, bons pães de queijo. como o melhor tempero é a fome, comi praticamente tudo disposto em minha frente. aproveitando que o simpático chef fazia o serviço de mesa, puxei papo dizendo que estava ansioso pra provar a sua comida no jantar. sempre sorrindo, respondeu que o bistrô funcionava apenas às sextas e sábados, que mais tarde serviria o chá das cinco e nada mais. insisti um pouco, argumentei que não precisaria ser menu degustação, que poderia ser algo simples etc. mas não teve acordo. regras são regras e existem para serem cumpridas, mesmo que não façam o menor sentido num lugar tão caro.

curioso conceito de hospitalidade, esse.

o chef feliz nunca mais veio à mesa e o serviço de chá era uma variação sobre o mesmo tema, com destaque para a péssima bebida em si. como já sabia que a noite seria escassa, guardei pães e frios para comer mais tarde com um vinho que tinha trazido na mala pra beber com a comida jamais vista.

segunda no café já tava me sentindo na casa de chá as mestiças e assim foi até o checkout realizado na terça-feira.

tenho 47 anos e essa foi a primeira vez que vi um hotel caríssimo não ter serviço de restauração. ressaltando ainda que o lugar é no meio do mato, não existe a opção de atravessar a rua e comer algo na rua.

claro que as reclamações em questão foram passadas para o chef, que em nenhum momento ofereceu algo para recompensar o desconforto. nem palavras gentis, muito pelo contrário. ficou a impressão de que se tem dinheiro na conta, já tá de bom tamanho.

de volta a são paulo, passei bem mal por dois dias. culpa da alimentação incompleta? isso não posso afirmar, mas que não foi prazeroso ficar de sábado à noite até a tarde de terça sem fazer ao menos uma refeição, isso não foi.

publico sobre gastronomia desde 2007 e meu maior prazer é dar dicas transantes. mas também tenho orgulho de livrar leitoras e leitores de roubadas como essa. que esse texto sirva pra isso.

se quem ri por último ri melhor, que o último a rir esteja comendo e bebendo bem longe dali, diante de um momento de felicidade. porque no provence cottage o único a sorrir é o chef, aquele que gargalha da cara do hóspede.

o altar

cagar é em casa, assim dizia minha mãe, que achava de uma falta de educação absoluta usar banheiros alheios para fazer o número 2.

mal sabia ela que anos depois me tornaria um cronista urbano e ir a banheiros de bares e restaurantes se tornaria parte do meu cotidiano. ainda acho que o estado do vaso sanitário de uma lanchonete pode dizer muito sobre sua cozinha.

mas que exercer a sacra atividade em casa é melhor, isso é. aqui tem o papel que eu gosto, posso deixar o som ligado numa altura apropriada com a trilha correta, etc.

por valorizar o ato contemplativo, evito ao máximo levar ao sanitário como companhia o onipresente aparelho telefônico móvel.

mas outras leituras são bem vindas, de maneira que sempre mantenho abastecido uma espécie de revistário improvisado ao lado do vaso.

as leituras devem ser leves e dinâmicas, já que meu banheiro não é lugar de literatura russa. não há tempo pra tanto e tem lugar pra tudo, cada um com seu cada qual.

por outro lado trabalhamos com cardápios de bares variados do mundo todo, literatura de bolso de grandes autores como mario bortolotto e lucas mayor e, por fim, alguns atestados de óbito, pro ocupante da vez sempre se lembrar de sua finitude. costumo dizer que a última falência do meu pai foi a múltipla dos órgãos e que a prova cabal disso está em frente a pia do banheiro.

acontece que tive uma situação kafiana, que embora aparentemente já tenha sido resolvida, ainda é muito recente pra mim.

e nada me tira da cabeça que reside um ser entre o cardápio do savoy american bar e o pedigree do shoyu, pug morto há 2 anos.

não tenho prova e nem evidência alguma disso, que tem tudo pra ser mera paranóia da minha cuca, mas fato é que não toco no móvel onde guardo os escritos desde a bem sucedida dedetização.

agora o ato é acompanhado de breve pânico, esperando que o pior ocorra, com direito a levar os pensamentos para a cama. noite dessas sonhei que ela tinha constituído família e que as pequenas brincavam entres os cardápios do tordesilhas e do bar do zezé.

tenho saído bem menos, devido a pandemia, de forma que terceirizar o vaso nem sempre é uma opção. mas, mesmo nas vezes que assim o faço, a imagem do revistário povoado sempre vem à mente.

então, como não tem como fugir das ideias que me atormentam, sigo usando o banheiro de casa na maior parte das vezes. afinal, como dizia minha mãe, cagar é em casa.

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