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Boteco do JB

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lobo guará

passei boa parte dos anos 80 do último milênio em barracas de feira livre, onde vendia frangos e miúdos de boi. as famílias eram maiores e se abasteciam pra valer nas ruas. até banca com tudo quanto tipo de feijão tinha. carioquinha não tinha vez na rua e o tipo de batata era escolhido conforme a sazonalidade. se tem uma coisa que a feira respeitava era a época das coisa tudo.

fora da feira, carne se comprava no açougue, pão na padaria e secos & molhados na quitanda. mercados municipais? existiam pra abastecer a população, num universo muito distante do atual cenário tão parecido com praças de alimentação. aliás, shopping era artigo raro. roupa se comprava na rua do arouche, doze de outubro, voluntários da pátria, teodoro sampaio, dependendo da região onde se morava.

cinema era na rua. no centro (que não era dividido como novo e velho, mas chamado pelos lapeanos de cidade), na região da paulista ou mesmo em pequenas salas espalhadas pelos bairros.

cada um com seu cada qual e tinha pra todo mundo.

aí começou a abrir as grandes redes de supermercado, uma atrás da outra. e o eixo do planeta entortou quando eles passaram a oferecer produtos dos pequenos comerciantes em bandejinhas assépticas do tamanho das novas famílias.

num piscar de olhos o cidadão médio passou a comprar pães, carnes, hortifruti, produtos de limpeza e muito mais no mesmo lugar. jogo de cama? televisão? algo ainda mais fora da curva cotidiana? o supermercado também tem. inclusive te obriga a entrar na loja pelo showroom de bugigangas que você nem imaginava comprar, tais como a máquina de espresso com cápsulas ou uma torradeira. tudo isso em 12 x sem juros. se seu cartão tiver estourado, abrem outro pra ti rapidamente, sem problemas. não precisa de dinheiro pra ser feliz, o que importa é o crédito. foda-se como vai pagar depois, o paraíso supérfluo tem seu preço. por que não levar também aquela churrasqueira moderna que você nunca aprenderá a usar, mas é a oferta do dia? tudo para seu mais completo conforto, aproveite que o carro tá próximo, numa boa vaga do estacionamento. na segunda-feira o terapeuta tenta te explicar a razão pela qual te causa tamanha excitação a proximidade entre automóvel e o portal do consumo.

enquanto isso, o pequeno comércio correu inutilmente atrás do prejuízo. as barracas de feira cederam aos cartões de crébito, abriram mão de suas especialidades para aumentar a grade de produtos oferecidos e até as tais bandejinhas tem lugar garantido no balcão. saudosas bancas de jornal tornaram-se vendedoras de tudo o quanto é tipo de treco, cinemas de rua migraram para outros segmentos comerciais e as panificadoras passaram a se comportar como pequenos graals urbanos, onde se acha quase tudo, menos a porra do bom pão.

com bares e restaurantes, a corrida foi outra. não precisou de hipermercado, a mera concorrência fez com que se a cena se destruísse sozinha, autoimplosão. o italiano médio deixou de cuidar do seu nhoque pra servir a itália inteira em uma página do cardápio. o autointitulado contemporâneo desfocou do produto final pra enfeitar as alegorias e adereços que poderiam justificar o saco de dinheiro cobrado se a comida fosse boa.

o cenário gastronômico passou por processo de parreirização. comida gostosa ganhou papel parecido com o do gol na copa de 94, mero detalhe. inclusive na maior parte dos endereços mais novos, tão arrogantes quanto ruins. aos jovens chefs, só interessa a sustentabilidade. pra que aprender a fazer pão, se pode comprar um moinho? e não precisa aprender a cozinhar cenoura, basta comprar no instituto feira livre ou naquele pequeno produtor que o sommellier gosta de chamar de seu. a bem afortunada juventude engajada compra e endossa tudo isso e muito mais. no final do jantar cirandeiro, um brinde com aquele vinho natural que estragou no navio coroa o jantar, numa cena tão parecida com os tapinhas nas costas dados pelos publicitários oitentistas. aliás, autorreferência e premiações nas quais o povo da área vota em si mesmo é outro fator em comum. com o diferencial que agora o instagramer que manja mais de trocadilhos que de comida abençoa o circo.

mas agora a quarentena zerou o jogo. temos na mão a oportunidade de fazer a coisa direito. até porque temos mais parâmetro e um vendaval de informações ao alcance da mão.

quem muito faz, nada faz direito. se atente aos pequenos lugares que começarão a pipocar pelas ruas, cada um com suas poucas especialidades.

os anos 80 não foram perfeitos e jamais voltarão. mas já passou da hora de voltarmos às nossas bases.

tenha olhos de garimpeiro, prestigie quem é bom de fato. mas cuidado com os xavecos! há um lobo guará na porta principal!

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